(…) não cheguei a entender a necessidade da epidemia, menos ainda daquela morte.

MACHADO DE ASSIS, Memórias póstumas de Bás Cubas

1

O ASSOMBRO

O VÍRUS CORRIA DESEMBESTADO LÁ FORA. Em Penedo, também, já nem se contavam as casas em que se ouviam os gemidos surdos de angústia pelos que se finavam ou os prantos libertos ou abafados pelos que já se decompunham no ventre das suas tumbas. E ninguém estava livre. Podia ser homem, mulher ou menino, moço ou velho, indigente ou endinheirado, branco ou preto ou mesclado. Até furta-cor, em sendo o caso de algum extraterrestre já domiciliado por aqui. O tal do vírus dava uma lição, ainda não assentada entre os homens, de que todos somos iguais em tudo, inclusive na vulnerabilidade aos caprichos da natureza e na impotência frente à impiedade do quarto Cavaleiro do Apocalipse.

Não se sabia o que fazer. Pelo que se dizia, não havia remédio que desse jeito para se fechar o corpo e não deixar o malfeitor entrar. Caso entrasse, porém, só restaria pedir sorte a Deus. Menos mau, portanto, era encarcerar-se dentro de casa. E se fosse o caso de ter de pôr os pés na rua, que se o fizesse com uma focinheira e a guardar distância de quem quer que fosse, como se nos desse nojo. Apesar de nem assim se ter uma anteguarda de confiança e um escudo de fé.

               Seu Epitácio, esquelético e enxofrado dono da funerária, não escondia o gosto ao ouvir, vindos do rádio ou da televisão, os relatos sinistros da fúria da pestilência pelo mundo afora. Não economizava, sequer, um sorriso que nada tinha de enigmático. Achava de valia para que pudesse medir, dia após dia, a marcha da desgraceira. Não lhe interessava que dissessem que muito se devia a devotos do pânico. Ele era um deles. E por razões comerciais, como tantos outros. Mas era. E não se envergonhava disso. Achava bom, sim, somar os defuntos anoitecidos ou amanhecidos, conforme a hora em que fossem contados. Animava os possíveis clientes, tão assustados que a cada vez mais ficavam com a promessa sinistra da morte anunciada. Como seria no caso de não haver caixão disponível. Melhor prevenir.

O único receio de Epitácio era o de que acabasse o seu estoque de caixões de tudo o que era de tamanho, tipo, cor e preço, antes que chegasse a nova remessa que já havia encomendado. Até havia pago adiantado, para garantir a entrega dentro do prazo. Daí por que os anúncios de que aceitava reserva, desde que a metade do preço fosse honrada na hora do acerto e a outra no instante da retirada do ataúde. O que, contudo, não era empecilho para que a metade adiada, a depender do combinado, fosse paga em no máximo seis módicas prestações mensais. O que, aliás, valia para qualquer tipo de urna funerária, independentemente de ser a mais humilde, mediana ou mais cheia de requififes.

Já seu Galeno, comprido e esguio dono da farmácia, sempre embutido num paletó de seis botões e na companhia irrevogável de uma gravata borboleta encarnada, não camuflava o rancor contra aqueles que desfaziam de remédios que ele tinha, aos montes, habitando as prateleiras da sua botica.

E se diz que tinha, pois que somente lá estavam até o dia em que o Prefeito mandou a polícia arrecadar tudo, sem pagar um tostão. Pagaria depois. Mas quem poderia acreditar que isso viria a acontecer? Quem é idiota para acreditar em promessa de político? E se não pagasse, o que era o mais certo, o prejuízo seria de Seu Galeno e só dele. Talvez, até, chegasse ao ponto de ser forçado a fechar ou vender o estabelecimento, bem que vinha na família desde o seu avô. Ainda bem que havia sido previdente e tinha escondido algumas caixas no fundo de uma gaveta e outras em casa.

Maldavam alguns que era só pela falência adivinhada, e só por isso, nada mais, que ele, com a cara amarrada, espalhava que o desmerecimento daquelas drogas era coisa que vinha da ruindade de certo tipo de gente. Gente que queria ver o circo pegar fogo. Apesar do discurso bonito de alguns de que a verdadeira intenção era a de proteger a saúde e a vida das pessoas. Mas isso é outra história.

Por isso mesmo, Seu Galeno ficava agastado, cerrava os dentes e algemava uma descompostura no fundo da garganta. Ele até admitia que os remédios malquistos muito bem poderiam não resolver o problema de um todo. Com o que não se conformava era com o se dizer que não ajudariam nem um pouco. E repetia, onde quer que estivesse, que, durante o seu tempo de faculdade na Bahia, aprendera, com um dos seus professores, que não há nada mais curativo para o enfermo do que a esperança. Sufocá-la era sempre mais cruel do que envenená-lo. E decretava, com a majestade de quem fala desde o trono pontifício: Não é espantando o boi que se vai pegar o bicho à unha. O povo tem de ser é esclarecido, não apavorado. O convencimento vai se avigorando com o tempo; o medo vai se diluindo.

O farmacêutico chegava a lembrar, a quem o desafiava, o chamego de Miguel das Casas com Marielza. Eram muitos, na verdade, os que já conheciam o enredo, de cor e salteado. Mas ele achava de bom tamanho reavivar a memória dos antigos e dar ciência aos mais novos. Embora não tivesse nada a ver.

               Marielza, mulher de alguma graça e mal chegada aos vinte anos, prestava serviços do seu ofício no puteiro do Camartelo, ali por trás da Igreja de São Gonçalo Garcia. O que era de vasto proveito para quem saía de lá enlutado pelo remorso ou abatido pelo temor de alguma provável maleita nos possuídos. Bastava chegar e virar à esquerda. Já estava na porta da igreja. E, mesmo que estivesse fechada, seria provável que ao menos um Cristo, dentre aqueles em que multiplicado o nazareno em imagens da paixão, tivesse a gentileza de escutar o penitente.

Miguel, por sua vez, cinquentão de vários merecimentos, bem-apessoado, de gestos comedidos e provável fortuna, encantou-se com ela. Sentado, então, à mesa de canto de sempre, ele desperdiçava noites inteiras tomando cerveja e gastando miolo de pote com quem quisesse escutá-lo, enquanto ela se desdobrava nos braços dos clientes ou de eventuais passantes necessitados de um desafogo.

               Quem quisesse que a chamasse de puta ou a ele de corno manso! Ele se virava em cão raivoso: os cabelos arrepiavam-se, os olhos como que ficavam vidrados, a baba escorria pelos cantos da boca e ele se erguia num salto, a cobrar satisfações.

Muita gente, na certa, não conseguia entender aquela condescendência e até poderia levá-lo na mangação. Mas Seu Galeno entendia. E entendia muito bem. Cada um é quem sabe por onde andam e aonde vão as suas verdades e mentiras. E afirmava, em alto e bom som, que mentira e verdade são tal e qual mulher da vida: são sempre serviçais dos caprichos daquele com quem se deita. Para Miguel, a verdadeira Marielza era aquela que se deitava com ele. Aquela que se deitava com outros, nas noites de rameira, era de faz de conta.

Era assim, concluía Seu Galeno, com essa coisa da pandemia. Uns diziam que aqueles remédios não serviam para nada e até poderiam matar; outros garantiam que serviam de verdade, se bem que se não tratasse de favas contadas. E, tanto uns quanto os outros, juravam por tudo o que é mais sagrado que estavam com a verdade e que os outros com a mentira. O paciente que ficasse qual cego no meio de um tiroteio.   

Ainda havia Salvador Batista, o padre de poucas palavras, como se as poupasse para cerzir os seus vastos e palavrosos sermões domingueiros. Para a maioria, ele era um clérigo de ninguém botar defeito. Mas é bem sabido que os boquirrotos não perdoam ninguém. Nem que seja somente por uma miúda ponta de inveja.

Pois não é que diziam que o padre era dado a algumas folias libertinas nos vãos por trás dos altares? Ninguém nunca provou nada disso. Mas não era preciso. Para os maledicentes não há um só escândalo que não valha a pena. O fato, porém, é que, se era verdade, ou não, que o padre se valia de uma afabilidade premeditada para alistar coroinhas, das duas, uma: ou atribuir-lhe aquelas orgias era uma mentira deslavada e ultrajante ou alguma intimidação truculenta entupia as goelas dos meninos.

Sobrava Dona Anunciada, com aqueles olhos de cabra morta, aqueles peitos corpulentos e aquela bunda de tanajura. Era ela quem cuidava da casa do reverendo e fazia a sua comida. Mas também, quanto a ela, tudo não passava da suposição. Ocorre que, como já ficou meio dito, os linguarudos nunca carecem de nada mais do que de um pé de conversa.

Mas é bom que se diga, pois que é o que aqui interessa, que o padre, nas suas esticadas homilias, não cuidava dos boatos acerca das suas traquinices desavergonhadas. Nem tampouco dos delírios de opulência de Epitácio ou das mágoas rabugentas de Seu Galeno.

O que pregava era que aquela tragédia era mais um aviso da providência divina, sempre sábia e misericordiosa. O que se tinha era um novo puxão de orelha numa humanidade profanadora. Deus escreve certo por linhas tortas, lembrava o dito popular. E garantia que se teria um mundo melhor pela frente. Se bem que arrancado à força, já que o pai supremo se convencera, finalmente, de que pelo bem não se chegaria a lugar nenhum. Os homens teimavam em não atentar para os sinais dos tempos. Continuavam mal-ouvidos, irreverentes, egoístas, gananciosos e hipócritas.      

               Enquanto isso, a praga continuava desenfreada. Pelo que se falava, a torto e a direito, até doutoras e doutores, enfermeiros e enfermeiras, já tinham pegado a doença e vários até morrido. Embora não fossem poucos aqueles que, não tendo sido golpeados por ela ou que sobreviveram e estão por aí contando a história, garantissem que aqueles tais de remédios tinham lá as suas serventias.

               Estava-se metido num verdadeiro samba do crioulo doido, como haveria de diagnosticar Stanislaw Ponte Preta.

2

O DESACORDO

NAQUELE DOMINGO, SEU GALENO FOI À MISSA DAS NOVE NA CATEDRAL. A mesma igreja em que tinha casado com Dona Eneida, a menos de cem metros da Capela da Forca. Por ele, mesmo, não teria posto os pés lá. O sermão o enfastiava, a cantoria o entediava, aquilo de sentar e levantar o enfadava. Só que a sua mulher, com quem compartilhava os roncos há mais de sessenta anos, não admitia faltar de jeito nenhum. Dia de preceito é dia de preceito, lecionava. Pelava-se de medo da fornalha do inferno. Pavor que recebera de herança da mãe, beata inveterada.

Ela ia e ia mesmo. Ainda que agora tivesse de sair arrastando os pés, as mãos e a cabeça tremendo e agarrada no braço do marido. Tinha um justo receio de que, no meio do caminho, desse uma topada ou tivesse uma tontura, indo se esborrachar no meio da calçada. Tanto mais agora, com a respiração atrapalhada por aquela máscara que lhe vinha do meio do pau da venta até o piso do queixo. Faltava-lhe o ar.

               Como seria de esperar, o Padre Salvador Batista não mudou o recado. Foi até mais longe. Proclamou que a pandemia estava ensinando aos homens o sentimento cristão do amor ao próximo; as pessoas já estavam mais solidárias e redescobrindo a bênção da fé. Quem fosse vivo haveria de ver. Ter-se-ia um novo mundo pela frente: um mundo de paz e liberto, de uma vez por todas, de tudo o que há de ruim.

               Seu Galeno entronchava a boca num gesto de fastio. Uma única coisa vinha-lhe na cabeça: se uma praga pudesse fazer a mágica ou o milagre de mudar a cabeça dos homens, o mundo já seria um paraíso desde a Peste Negra. E olhe, matutava ele, que ela, tirando-se do número de gente que havia naquela época, matou muito mais do que parece que seria o saldo desta nova edição.

               Teve vontade de se levantar de vez e dar o fora da catedral. Não o fez por causa de Dona Eneida. Ela ficaria indignada. Temia pela danação da alma dele. Já bastava tanta besteira que ele dizia a três por quatro. Não media as palavras.

Não havia nem um só herege, segundo ela, que esculhambasse tanto o papa quanto Seu Galeno: Aquilo é um comunista, um falso profeta, bradava ele onde quer que estivesse.  A mulher só faltava enlouquecer. Mas era o mesmo que nada. Seu Galeno não tirava por menos: Essa sua bíblia, Neidinha, parece mais um romance de terror: é Adão e Eva condenados a trabalho forçado porque caíram na besteira de comer uma porcaria de uma maçã; é irmão vendendo irmão por causa de inveja; é rei mandando matar o marido da amante para ficar com ela; é discípulo negociando o mestre por trinta tostões… E por aí vai. Para ele, os relatos incluídos na bíblia não estavam lá para ensinar; estavam lá para testemunhar. E, pelo visto, de lá para cá não mudou nada. A não ser os cenários.

Chegava ao ponto de Dona Eneida cerrar os olhos e enterrar os ouvidos nos côncavos das mãos, deixando bem claro que não queria mais escutar tanta estultícia. Eu não entendo essa sua revolta toda. Era o que, quando muito, ainda dizia, antes de se fechar em copas. Ao seu juízo o marido perdera o juízo.

Seu Galeno chegava a ranger os dentes. Mas fazia de tudo para não perder a paciência. Quando estressada, Dona Eneida costumava tremer mais do que carro velho passando por cima de um detestável sonorizador. E ele tinha receio de que ela tivesse um troço. Até porque ela andava meio esquecida e de vez em quando não tomava os remédios que controlavam a pressão e aquela tremedeira.

Naquela noite, Dona Eneida avançou o sinal: Olhe bem aqui, meu marido. Você mesmo já disse, várias e várias vezes, que dizer que o lobo comeu a Chapeuzinho não quer dizer que ele mastigou e engoliu a menina. Pois era mais ou menos a mesma coisa na Bíblia: cada uma das histórias que ela conta tem uma mensagem por trás. E que às vezes é preciso mostrar a maldade dos homens, para chamar a atenção das vantagens do bem. É só se tendo caminhos a escolher que tem sentido escolher um deles.

Não é a mesma coisa, não, contrapôs-se o farmacêutico. No caso da Chapeuzinho você tem uma história de Trancoso, contada como história de Trancoso; já na Bíblia, as histórias são contadas como histórias de verdade e vocês leem, enfiam na cabeça e não cansam de repetir como se fossem histórias de verdade. Esse é o problema.

Foi quando o telefone se danou a berrar. Num primeiro momento, Seu Galeno ainda hesitou. Aquela conversa com Dona Eneida ainda não havia terminado. Mais um segundo, contudo, já havia mudado de opinião e atendeu. Poderia tratar de uma emergência.

Era a mulher do Epitácio, o dono da funerária e seu amigo de infância: ele estava hospitalizado; o vírus o havia derrubado; não estava nada bem. O boticário tomou um susto. Há três ou quatro dias Epitácio havia estado com ele na farmácia. Um pouco abatido, é certo. Reclamava do corpo enfadado, da garganta arranhando, de dores nas juntas e de uma tosse insistente que judiava dele a noite inteira. Teve febre?  Seu Galeno foi logo perguntando. Não. Febre não tive, respondeu Epitácio. Poderia não ser mais do que um resfriado muito forte. Mas era preciso cuidar logo.

Lembrou-se Seu Galeno, então, de que havia escondido quatro ou cinco caixas dos remédios inscritos na lista dos medicamentos considerados abomináveis, como os livros anotados no Índex do Vaticano. Foi buscar uma caixa de cada e entregou a Epitácio. O que fez com a dissimulação de quem entrega, no meio da rua, um papelote de cocaína. Disse como ele deveria tomar e pronto. O paciente foi embora e não deu mais notícias.   

Agora, aquela novidade: já havia sido transferido para a UTI. Mas só havia um respirador disponível. Logo aquele que o setentão homem da funerária teve de disputar com um jovem dos seus vinte, vinte e poucos anos. Epitácio saiu perdendo. Era velho demais para merecer ser salvo no lugar de quem ainda poderia ter muita coisa a dar.

A que ponto chegamos, um Epitácio ofegante teria refletido e golfado nas ouças da mulher: Nós, velhos, viramos estorvos por decreto.


3

A INCERTEZA

NO MESMO DIA EM QUE CHEGOU A NOTÍCIA de que Epitácio não havia resistido, Dona Eneida passou a noite com falta de ar, como se estivesse a se afogar no seco. Seu Galeno, farmacêutico metido a médico, fez de tudo e um pouco mais para evitar o naufrágio da mulher. Não houve jeito que desse jeito. Muito pelo contrário. Era como se quanto mais ele fazia mais ela piorava.

Lá pelas quatro da manhã ele se agoniou de vez e se lembrou de que Arnóbio, seu vizinho, tinha um carro na garagem. E que, além do mais, era gente muito solícita. Desvestiu o casaco e arriou a calça do pijama, meteu-se na primeira muda de roupa que teve nas mãos, enfiou os pés nas meias e nos sapatos e foi bater na porta do vizinho. Arnóbio nem titubeou. Pediu, apenas, que Seu Galeno aguardasse uns quinze minutos. Seria o quanto ele precisava para escovar os dentes, lavar o rosto, pentear o que lhe sobrava de cabelo e vestir uma roupa de sair.

Arnóbio demorou muito menos do que era de se esperar. Os dois sentaram Dona Eneida numa cadeira de braços feita de liteira, transportam-na com o cuidado do mundo todo e a acomodaram no banco de trás do carro. Arnóbio tomou conta do volante e Seu Galeno do lugar do carona. E partiram.

As ruas estavam desertas. Não havia um só veículo rodando. Nem um pé de pessoa. Movimento, mesmo, só viram na Ladeira do Cajueiro Grande. Mesmo assim, o das folhagens dos raros fícus benjamina plantados nas calçadas. Menos de cinco minutos mais tarde e já estavam na Urgência da Santa Casa de Misericórdia

               Dona Eneida foi atendida na hora. Fez tudo o que é de exame e ficou provado que estava com a moléstia, sim, mas que os pulmões não mostravam defeito. Como não havia leito vago, foi medicada e a despacharam para casa. Seu Galeno ficou bravo, a ponto de quase subir pelas paredes. Arnóbio foi quem, a custo, conseguiu acalmá-lo.

               Já em casa, Seu Galeno foi logo buscando os remédios malquistos, mediu as dosagens, deu-lhes a companhia de meio copo d’água e os trouxe para Dona Eneida. Ela não titubeou. Endereçou os comprimidos no rumo da goela, despejou a água na boca e engoliu tudo de uma só vez.

               Veio, então, a hora do retorno da rabugice de Seu Galeno: Foi bem na missa que você arranjou essa coisa. Não duvido nada. Agora não tem mais jeito. É questão apenas de sorte. Mas o pior é que você já está doente e eu na bica de ficar, também. E por sua culpa.

               Dona Eneida não rebateu. Seria burrice gastar energia por uma besteira daquela. Principalmente numa hora em que se rendia a um medo sem tamanho de bater a cassuleta.

               Uma semana depois, porém, e Dona Eneida já estava novinha em folha. A não ser pela tremedeira, pelas palpitações, pela pressão nas alturas e pelas pernas inchadas. Mas isso tudo já vinha de muito antes. Enquanto isso, Seu Galeno escancarava os dentes. Havia perdido com Epitácio mas havia ganho com Dona Eneida. Agora, tinha o que passar na cara dos boticários concorrentes.

Talvez não tivesse perdido nem ganho nada, a contar da opinião de um deles. Não era nem o caso de o remédio não ter dado certo em um e dado certo em outro. O que salvava um doente podia matar o outro. Essas surpresas aconteciam a três por quatro.

Que fosse isso, amuou-se Seu Galeno. Conforme também aprendera, certo mesmo estava o Pai da Medicina. Ele havia dito que aos doentes, antes de mais nada, deve-se ajuda. Se não foi o remédio que de fato ajudou, pelo menos não matou. E, no mínimo, deu ânimo. O outro fez um ar de riso debochado e a conversa foi ficando por ali.

               Oito ou dez dias depois foi a vez de Seu Galeno dar trabalho na UTI da Santa Casa de Misericórdia. Mas é ainda cedo para se dizer se ele vai se curar ou se vai tomar o rumo da terra dos pés juntos. Está ainda na fase de pedir sorte a Deus.

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