
Cabresto curto, pulso forte (…), castigava sem dó nem piedade.
JORGE AMADO, O sumiço da santa
1
A ESPOSA ELVIRA
ELVIRA TEM LÁ SUAS VIRTUDES. E não são poucas. Mas isso não impede que encha o peito para se aclamar como osso duro de roer. Com ela, pelo que sentencia com a testa franzida, os lábios enrijados e o queixo empinado para cima e para a frente, o que prevalece é a lei do cão. Logo, não cabe meio-termo: ou oito ou oitenta. E é assim mesmo: ama e desama com o mesmo arrebatamento. Não precisa muito para de amiga fervorosa virar inimiga de fogo e sangue ou vice-versa.
Seja quem for, ela é capaz de amar ou odiar de cara. Nem precisa trocar duas ou três palavras. Basta olhar de longe, ver numa fotografia ou não ter mais do que notícia de que existe. Pronto. Já passa a venerar ou detestar. Enquanto alguém cai nas suas graças, tolera tudo. Não interessa o que seja. Ao menos até que bote na cabeça que lhe pisou no calo predileto. Mas se não gosta… Danou-se! Põe defeito onde não há nem pode haver. Do tipo de botar chifre em cabeça de cavalo ou encontrar plumas em asa de morcego. Fica entojada somente de olhar de longe. Quanto mais de ouvir a voz! Nem que seja pelo telefone ou no meio de uma live qualquer. É coisa de ter engulho e, se brincar, de até de vomitar.
Quando perde as estribeiras, então… Saia de perto. Ela mastiga sem dó nem piedade. O que interessa é matar na unha. É chupar o olho do sujeito, como se diz por essas bandas. Mesmo que corra o risco de pagar algum preço e de se rasgar por dentro. Sofre a consequência que for, desde que não desperdice uma encrenca. E não há encrenca que ela se dê o luxo de desperdiçar.
Quando eu me abuso não meço consequências, afirma rangendo os dentes. Num piscar de olhos até santa de altar vira puta. E, se for homem, já passa a ser raparigueiro, corno, ladrão, filho da puta e por aí vai. Ou tudo isso embrulhado em um só pacote. E não se vá pensando que a truculência da descompostura depende do tamanho da ofensa real ou adivinhada. Para Elvira, não tem esse negócio de maior ou menor. Tudo o que ela entender por agravo tem a mesma e vasta estatura.
Quando resolve botar a boca no trombone, não interessa se é durante uma sisuda solenidade oficial, uma seráfica missa cantada, um lacrimoso culto de Semana Santa, uma inocente comemoração de aniversário de criança ou uma bem-comportada festa de casamento ou de bodas de sabe-se lá de que. Nem também se está na frente dos chifres do demo ou da hóstia consagrada. Abre o verbo sem um tico de sobrosso. A bem dizer, até mais se assanha quando sabe que aquele que está diante dela, com toda certeza, vai servir de pombo correio e botar os insultos no colo do escrachado. Melhor do que isso, mesmo, só quando é o próprio insultado que está ali, bem na frente dela. Aí é que lhe dá mais gosto, garantindo que não há nada melhor do que dizer na tábua da venta. Tetê a tetê, no erudito francês de um letrado senador.
Pelo visto, o que lhe dá mais júbilo não é espinafrar. É ver o outro com a cara no chão, sentindo-se como que afogado na merda. Se não vê seu alvo arruinado, funga desapontada. Dá-lhe um medo danado de haver perdido o ferrão e ter tido desmanchada, de uma hora para a outra, a sua excelência como exímia detratora. Mas não se avexe, não. Ela logo irá recobrar a confiança e regressar mais feroz do que nunca.
Com Elvira, é como se a raiva, mesmo que sem sentido, seja que nem pão assando no forno: a massa vai ganhando corpo à custa do calor e do fermento. Isso mesmo. Uma vez contrariada, a fúria, ao invés de ir amornando com o passar dos dias, vai mesmo é crescendo, até roçar o desatino. Quando não o alcança. Encorpa-se, ao correr de cada noite, à custa do remoído e da fervura das juras de desforra.
Para se ter uma ideia: se o desafeto lhe dirige a palavra é desaforado; se preferir ficar calado é provocador; se der um ar de riso é cínico; se fechar a cara é birrento; se cair na asneira de reclamar o que seja é filho dessa, daquela ou daquela outra. E não adianta ir com desculpas e muito menos botar panos mornos. É pior. Elvira, ainda que não tenha estado em algum lugar, num momento certo, sabe muito mais de cada minúcia dos acontecidos do que quem lá esteve de corpo presente. Pode não ter a visão telescópica da superguel, mas é como se a tivesse. Até conseguir ler nas mentes das pessoas ela dá fé de que consegue. Eu não quis dizer isso, você pode tentar absolver-se. Não disse mas pensou, vem logo com a onisciência que compartilha com o Criador. Ela, por certo, com mais quinorrau ainda.
Em resumo: são sempre dela as certezas, o cabresto, as esporas e o chicote.
De uma hora para a outra, contudo, a ira simplesmente se esvai, como que por milagre de Santa Rita de Cássia das Causas Impossíveis. É claro que terá deixado um rastro de constrangimento, amargura, humilhação e malquerença. Mas ela, nem-nem. Quanto mais estrago tenha feito, melhor.
Ela é mesmo do tipo que ninguém segura. Embora não se possa deixar de dizer, como já se deu sinal no começo dessa prosa, que ela tem lá as suas virtudes. E não são poucas: não tolera ver criança maltratada nem velho abandonado; é dona, por assim dizer, de uma ONG que acode moradores de rua; trata os bichos de casa como se fossem gente da família; derrama-se em lágrimas quando pensa nas criaturas torradas vivas em incêndios na Amazônia ou no Pantanal ou mesmo nas estranjas; invoca tudo o que é de santo, nem que seja para acertar na loteria, ficar rica e ajudar os necessitados.
Só não vá você se meter a sabido e pensar que tem alguma explicação para tais metamorfoses. Nem Freud nem Jung nem Nise da Silveira a teriam. Nem mesmo Deus, talvez, embora se diga que ouve, sabe e pode tudo. Mas o fato é que é assim que Elvira é. Sem tirar nem pôr.
Quem não quiser acreditar que não acredite. Mas é bom que seja o bastante ajuizado para não arranjar uma desavença com ela. Depois não vá chorar lágrimas de sangue. Quem avisa, amigo é!
2
O MARIDO OSCAR
SEU MARIDO OSCAR, CAIXA DO BANCO DO BRASIL EM PENEDO, inventou, na noite de uma terça-feira, de bater uma pelada no Clube dos Trinta. O que, por si só, já era de deixá-la com a orelha em pé. Elvira já engolia, muito a contragosto, que esse tal de jogo fosse sagrado às sextas-feiras. Mesmo porque já o conhecera com essa mania. Mas numa terça-feira? Isso não era só novidade. Era suspeitoso.
E lá foi ele, todo paramentado e na maior fissura para inaugurar as novas de chuteiras que, compradas de uma dessas empresas de mercado eletrônico, haviam sido recebidas há poucos dias atrás. Vinha se gabando de serem das mesmas usadas por Neymar no PSG.
Nem adivinhava o que lhe iria sobrar do azar de haver perdido, naquela manhã, o trancelim que havia ganhado da mãe, no dia do seu aniversário de dez anos. Era tão agarrado a ele que somente lhe dava uma fuga quando ia dormir ou tomar banho: quando ia dormir, porque o pingente tinha uma extremidade afiada e, várias e várias vezes, ele havia sido despertado por uma espetadela no rosto, no peito, no pescoço ou na vizinhança do sovaco de um dos braços; quando ia tomar banho, pois que tinha receio de que o cordão arrebentasse, a troco de uma escovadela mais ríspida ou de qualquer outro capricho do azar.
Pois não deu outra. Justo naquela manhã, ele se descuidou e lá se meteu debaixo do chuveiro com o danado do trancelim pendurado no pescoço. E aí, quando menos esperou, já se deu conta de que ele havia despencado e já escorregava afoito no rumo da boca do ralo. Ainda ameaçou pegá-lo no meio do caminho. Mas já era tarde. A derradeira vez que o viu foi quando a tranca, como se a lhe acenar um adeus, meteu-se buraco adentro e sumiu de vez. Ainda tentou, todo afobado, catá-lo lá dentro, onde estaria misturado com o monte de cabelo que costumava ficar acoutado no fundo. Missão, contudo, que se de antemão já era de êxito pouco provável, logo deu provas de que, desde o começo, não tinha futuro. Como não teve. Ou se deva dizer, mais apropriadamente, que a empreita só podia dar em água, como aconteceu, porque mais coerente com uma tragédia encenada dentro de um banheiro
Não havia mais o que fazer. Era conformar-se. Embora soubesse o quanto iria demorar para que cicatrizasse a ferida que lhe ficou rasgada na caixa dos peitos da sua alma imortal. Nem saberia como dar a infausta notícia a Dona Gracinda, sua mãe, caso ela já não estivesse guardada numa carneira do Cemitério São Gonçalo do Amarante. Respirou fundo. Ainda bem que não teria de passar por essa provação.
Essa cruz foi benzida por Frei Damião, durante uma Santa Missão que ele fez aqui com Frei José, historiava Dona Gracinda, enquanto ainda respirava, com os olhos ensopados por lágrimas piedosas. E lá desandava a falar da multidão que se acotovelava na Praça da Catedral. Havia sido preciso que ela saísse feito uma desmiolada pelo meio do povo, no empurra-empurra, até alcançar a porta da sacristia que dá para o lado de fora da igreja. Conseguiu entrar, mas só a muito custo. E, mesmo lá dentro, não foi nada fácil chegar junto do venerado capuchinho.
Frei Damião de Bozzano, por aquele tempo, já andava perto de beirar os cem anos. Andava ofegante e até meio trôpego. Tinha os olhos fundos e guardados por cortinas gelatinosas que os faziam parecer sempre lacrimejantes. O ar cansado varava a barba branca e malcuidada que lhe vinha de uma orelha à outra, sem qualquer ponte que a emendasse com o bigode. O pescoço troncho, obedecendo a uma rancorosa curvatura da coluna, arriava a sua cabeça para a frente e para baixo, como se avisando que só descansaria quando o queixo do pregador ficasse escorado na forquilha que entremeia as saboneteiras. Fala mansa, salvo quando a ameaçar as comadres com os rigores do Inferno. Não o Inferno de Dante, seu compatriota. O Inferno de mesmo, pegando fogo de verdade e esbanjando estocadas com tridentes em brasa. Afora tantas outras malvadezas assistidas pelas gargalhadas abrasivas do Demo e dos seus capangas.
Foi dureza, sim. Mas a obstinação de Dona Gracinda deu um jeito. E ela, com isso, havia pago uma promessa que havia feito ao próprio missionário, apesar dele nem saber disso. E antes, muito antes, de se ter a mínima certeza de que ele, quando algum dia abotoasse o paletó, seria beatificado. Quanto mais canonizado por declamação aparatosa do Vaticano, quando seria coisa que somente o sempiterno poderia decretar. Mas promessa é promessa e ela a havia feito, naquela noite inverno, ajoelhada em frente ao oratório que santificava o seu quarto de dormir. Nele moravam as imagens que Genésio, seu marido, quando ainda eram moços e fogosos, tinha sempre o cuidado de deixá-las de costas para a cama, quando os dois se preparavam para as acrobacias da vadiação.
Foi dessa promessa, repetia sempre, que ela se valeu (e deu certo) para salvar Oscar da morte certa. O menino, havia mais de uma semana, andava queimando de febre, de dia e de noite, os olhos em brasa viva, o nariz escorrendo, uma tosse de cachorro que não acabava mais, o corpo inteiro empestado por um vermelhão de dar medo. Era o sarampo a minar de dentro para fora.
Oscar, que sabia disso tudo, de cor e salteado, não teve como não passar o dia inteiro com a cabeça cheia. Até andou se atrapalhando, aqui e ali, na contagem de dinheiro no caixa do banco. Não tinha como saber se o frei era vingativo e cuidaria de lhe restaurar o suplício da moléstia. Daí por que chegou a pensar em comprar outro trancelim, pelo menos parecido. Talvez desse para enganar o benfeitor, caso ele fosse de tolerância zero. Embora não parecesse que o era. Muito pelo contrário.
Comprar, aliás, até que não seria um empreita atribulada. Bastaria dar um pulo na joalharia que fica na Rua do Comércio, fronteira ao Teatro Sete de Setembro. Ficava só a dúvida quanto à reação do milagreiro. Só que, do jeito como era bonachão, talvez até nem fosse procurar saber do acontecido. Quanto mais, quanto mais.
Uma coisa, porém, era certa: levaria para o túmulo aqueles medos e aquele desgosto. Se bem que desgosto muito menor, na certa, que a mágoa perfurante que vararia o coração da sua mãe. Tal qual um dos sete punhais que explicam o semblante desmoronado de Nossa Senhora das Dores, justo a cada Quarta-feira Santa. É o dia em que ela, na frente da Igreja do Rosário dos Pretos e do meio para o fim da Procissão do Encontro, bate os olhos no filho ensanguentado da cabeça aos pés, um lenho impiedoso a lhe esmagar o ombro direito.
3
O ENSAIO DO FIM DO MUNDO
APESAR DE A ALGUÉM PARECER EXAGERO, posso dizer que Oscar estava a se sentir completamente nu, com a falta daquele trancelim. Depois de tantos anos de isp, era como se fizesse parte da anatomia do seu pescoço. A cada vez que se desligava um pouco do interminável e enfadonho contar de dinheiros dos outros, encolhido no guichê do banco, lá era como se assistisse, novamente, aquele filete dourado e serpenteante a sumir ralo adentro. Mas conseguiu sobreviver.
Preocupava-se com o não ter logo anunciado o infausto evento a Elvira. Acontece que ela ainda dormia quando ele, já atrasado, seguiu a toda pressa para agência do banco que, por aqueles dias, ainda tinha endereço na cabeceira da Rua do Comércio. E como foi almoçar com o gerente e o com o contador no restaurante do Hotel São Francisco, ali quase defronte, engoliu a notícia e deixou para somente ruminá-la quando chegasse em casa, logo mais à noite. O que terminou não acontecendo. É que mal chegou em casa, na Rua do Rosário Estreito, não demorou nada e lá estavam os colegas de pelada. Não tinham tempo a perder. Quanto mais cedo começassem, melhor. E era só isso o que interessava.
Ao retornar, lá pelas onze da noite, foi direto para o banheiro, tomou banho, envolveu o corpo, da barriga para baixo, na toalha com que se enxugou, e entrou no quarto para vestir o pijama. Foi quando Elvira deu conta da ausência do tal do trancelim. E já começou com o interrogatório, cuja liturgia bem poderia ter sido aprendida na mesma faculdade em que Tomás de Torquemada fez seu curso de doutorado.
Não houve explicação que a deixasse satisfeita. Ele estaria escondendo alguma coisa. Ela tinha certeza disso. Nem viesse com conversa mole que não iria colar. Ela bem que maldara que aquela conversa de pelada numa terça-feira era enrolação. Tinha certeza absoluta de que ele perdera o trancelim num jogo de baralho. A prova disso é que, de uns tempos para cá, ele vinha mais cuidadoso com os gastos da casa. Dizia que a inflação vinha comendo o seu salário. Ela não acreditava. Aquela súbita sovinice tinha de ter outra razão. Ele devia era estar sendo depenado nas mesas de carteado. Só podia ser isso.
A que servia Oscar esforçar-se para explicar? Relatar a verdade era tempo perdido. Mentir, poderia ser muito pior. Dizer que nunca se sentara numa mesa de carteado, depois que o mundo havia começado a desabar, era no mínimo tempo perdido. E se ela, pelo menos nesse ponto, entendesse, à força, de admitir que não havia nada de carteado, já na certa iria dizer, com a mesma convicção, que ele perdera o trancelim em um dos quartos imundos do puteiro do Camartelo.
Não deu outra. Elvira continuou rosnando que nem um cão hidrófobo, urrando que nem uma onça acuada, esperneando que nem siri dentro da lata. Àquela altura ele já era mentiroso, dissimulado, cínico. Por pouco ela não pulou no pescoço de Oscar. A vontade era esganá-lo. Acabar com a raça dele. Você estava na jogatina, sim, explodiu Elvira. Nem adianta disfarçar. Eu sei o que estou dizendo. E então, num tom de fingida condescendência: Meu querido: não é melhor dizer a verdade? Pra que mentir? Só vai piorar as coisas. Mas logo recobrou toda pompa da autoridade de que se investia: Não seja idiota. Você sabe muito bem que não consegue me enganar. Eu conheço você muito mais do que você imagina. Agora mais inflamada, passava na cara de dele que sabia, muito bem, que ele estava mentindo. Os olhos e o jeito o denunciavam. Para completar, ela até poderia dizer, com toda a segurança do mundo, o que estava passando pela cabeça de Oscar: tintim por tintim. E nisso arregaçou umas das pálpebras inferiores, apontou para o meio do olho e veio com essa: Retina, Oscar. Retina. Eu vejo muito mais do que você nem de longe pode imaginar. Nem de óculos preciso. Você é um bosta e vai pagar caro por querer me fazer de besta.
Oscar murchou e sentou-se na beira cama, indigente de ação. Pelo que já tinha aprendido, depois de vinte anos de escaramuças e baixarias, Elvira não recolheria a guarda nem iria ensarilhar as armas. Muito menos aquietaria a brabeza. Desse no que desse. Ele já podia ir logo se acostumando: seriam semanas, talvez meses, de cara feia, indiferença, silêncio sepulcral, provocações por cima de provocações. E ele que não caísse na asneira de lhe dirigir a palavra ou atirar-lhe o olhar. Quanto mais tocar nela, mesmo sem querer.
Indignada com a resistência dele em admitir o que ela queria, Elvira foi arranjando jeito de interrogar cada um dos colegas dele de banco, que eram os mesmos das peladas. Mas na verdade não os interrogava. Antes cobrava autenticação da história que ela mesmo urdiu e encasquetou. Dá-se que nem um deles se deixou levar pelos arrodeios dela e muito menos caiu nas suas armadilhas. Não poderia dar outra: ela logo os erigiu como cúmplices e, portanto, parelhas como farsantes e desavergonhados.
Veio, então, a vez de catar os depoimentos das mulheres daqueles hipócritas. Também não deu certo. Não houve uma só que se deixasse prender nas arapucas armadas por Elvira. E nisso, o que ela ganhou foi arranjar mais gente para tachar de inimiga figadal. Figadal! Gostava muito desta palavra. Era daquelas de encher a boca: Fi-ga-dal. A bem dizer, chegava a dar alguma majestade aos seus arroubos de inimizade.
Estava só. Mas nem por isso arredava o pé. Oscar havia perdido o trancelim em algum carteado. E ela odiava qualquer espécie de jogo de azar. Um seu tio tinha até se desfeito da casa de moradia por causa desse vício maldito. Nem pensar que o marido poderia chegar perto de sujeitá-la a uma humilhação daquele tipo. Antes disso ela daria um jeito nele. Nem que fosse entornar água quente no ouvido do marido, numa hora em que estivesse no terceiro sono.
Quanto a Oscar, estava mesmo em um mato sem cachorro. Até os dois filhos, ambos já taludinhos, começaram a tratá-lo com ostensivo menoscabo. Elvira, na sua militância implacável de fundamentalista, fizera as cabeças de ambos. E quando Oscar, então, achou melhor desertar da cama do casal e asilar-se no sofá da sala de visitas, foi que os meninos o descartaram de vez.
Passou a viver numa casa que não era dele, embora fosse; com uma mulher que não era a dele, embora fosse; com dois filhos que não eram dele, embora fossem. Já até começara a duvidar se aquelas mãos e aqueles dedos que contavam os dinheiros dos outros, no guichê do Banco do Brasil, eram mesmo dele, embora fossem.
Três meses mais tarde e nada havia mudado. Muito pelo contrário. Para ser franco, Oscar vivia um inferno em vida. Só faltavam as labaredas. As lapadas, como que com a chibata incandescente de Lúcifer, estas ele já encarava, dia sim, outro também.
4
O DESFECHO A ESCOLHER
NAQUELA SEXTA-FEIRA, DIA TREZE DE AGOSTO, Oscar decidiu dar um chute no pau da barraca. Ao ir jogar a sua pelada ritual, ele sempre levava uma sacola com os seus pertences. Pois aproveitou a deixa e naquela noite enfiou ainda duas mudas de roupa, um par de sapatos, um cinturão, um desodorante bastão, um pente, uma pasta de plástico com uma papelada e o barbeador elétrico que havia ganho dos colegas de banco, no dia do seu mais recente aniversário.
Após o jogo, segundo havia programado, desceu direto para o Hotel Central. Já na tarde daquele dia havia garantido um quarto que sabia que luxo não tinha nada: uma cama patente, uma cômoda, um camiseiro, uma mesinha de cabeceira, um abajur caindo aos pedaços e pronto. O banheiro comum ficava no corredor e até que era limpinho. A única televisão do hotel estava na sala de jantar e tanto servia à família do dono como aos hóspedes. Quanto à boia, isso era coisa para se ver mais na frente. O importante era ter um lugar para esfriar os miolos.
Não posso dizer, de sã consciência, se ele agiu certo ou errado. Até porque não tenho nada a ver com isso. E mesmo nem sei como agiria, caso uma desgraceira dessa acontecesse comigo. Além do mais, era ele quem tinha de saber o que era melhor para ele. Não eu. Embora eu não discorde de quando o ouvi dizer, mais ou menos com essas palavras, que se construir a felicidade já é trabalhoso, quando pouco insano é desmanchar o sossego, arruinando a paz. É dar murro em ponta de faca.
Quarenta e oito horas depois começaram as embaixadas: uma noite foram os pais de Elvira; na seguinte foi a vez do empavonado irmão de dela; na terceira vieram as duas irmãs solteironas; na quarta os dois meninos. Só ela não apareceu nem mandou recado. Tanto melhor, aplaudiu Oscar.
Mas essa ausência estava mais do que explicada. Pelo que se soube, ela teria dito que ele, caso fosse do seu livre querer, que viesse ajoelhado lhe pedir perdão. E, mesmo assim, ela ainda iria pensar duas vezes se o aceitaria de volta ou não. Caso não fosse do gosto dele aquele protocolo, ele que se virasse como quisesse. Ela não estava nem aí. Quanto à história do trancelim perdido no banheiro, ele sabia muito bem que era uma mentira deslavada. Aquela história de promessa a Frei Damião era um grande papo furado. Besteirol inventado pela mãe dele, quando já estava gagá. Invenção de uma quenga resmungona.
Claro que Oscar ficou injuriado. Falar assim da sua mãe, que não tinha nada a ver com aquela encrenca, era de mais da conta. Era um verdadeiro ultraje. Um desrespeito sem tamanho. Tanto mais quando ela já havia morrido há um bocado de tempo e nem tinha como se defender de tamanha grosseria. Uma anciã, enfim, de quem agora só sobravam os ossos descarnados e talvez o terço que lhe sitiava as mãos na hora do enterro. O caixão, este já era. De há muito que teria apodrecido e se desmanchado de vez. E acima de tudo era sua mãe, não sendo tolerável que aquela desequilibrada a destratasse daquele jeito.
Não tenho muita certeza quanto ao que aconteceu depois disso. Saí de Penedo enquanto o dramalhão ainda se arrastava. Mas, mesmo antes disso, já tinha ouvido falar que ele teria dito, com todas as letras, que preferiria morrer a pedir perdão por uma coisa que não fez. Menos, ainda, obedecendo ao ultimato lançado por Elvira. Ajoelhar-se diante dela, como se estivesse prostrado aos pés do altar-mor da catedral metropolitana e ela com ares de santa padroeira, a olhá-lo do alto, muito bem acomodada em um nicho de sacra glorificação. Não tinha cabimento, suspirava ele, vermelho como um camarão torrado. Nem que ela fosse Nossa Senhora das Graças e a cabeça dele a da serpente esmagada pelo pé da madona.
No que que deu esse desmantelo todo, não posso dar certeza, nem mesmo a mim. Mas escutei, há uns dois anos atrás, de um desses inveterados escavadores da vida alheia, que nem deu tempo para que a arenga terminasse demolida e eles voltassem aos agrados ou se cada um tomou o próprio rumo. Oscar, dois meses depois de ter arrumado as trouxas e ido se exilar no Hotel Central, acabou-se numa virada de carro, quando voltava de um dia de folgança no Pontal do Peba. Há quem diga, até mesmo, que estava na companhia de uma adolescente e promissora noviça no ofício de puta. Só que eu não vou garantir que foi assim ou assado.
Ninguém, contudo, vá se sentir obrigado a tolerar esse desfecho. Até eu o acho muito sem graça. Pode, portanto, sentir-se à vontade para inventar um mais meloso, mais trágico ou até cômico. Mas vá logo sabendo que não vou assinar embaixo. Deus me livre de arriscar um fuzuê com Elvira, caso ela ainda ande por aí, viva e bulindo!