Foto Carlos Méro

NÃO VOU DIZER QUE SE DEVE ACREDITAR NO RELATO que vem aí pela frente. Deus que me livre! Mas garanto que eu estava lá e dou fé que só vou contar o que vi, ouvi e tenho bem arquivado na memória. 

O que não quer dizer que aqui ou ali não esteja enfeitando o maracá. Nem isso, talvez. Bem pode ser, isso sim, é que as lembranças que guardei tenham sido impressas pela fantasia de um menino atordoado pelo susto do insólito. Mas também pode ser que provindas de um delírio que chegou com algum febrão. Tal qual aquele que me afogueou no dia em que fui picado por uma aranha caranguejeira.

Só peço, pois, por tudo o que é mais sagrado, que ao menos não se negue o benefício da dúvida.

 

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NAQUELE TEMPO, HOJE REMOTO, VIVIA, LÁ NO PENEDO, um rapazola que deveria acudir, pelo certo, mesmo, por José Raimundo da Silva Santos. Se é que não me falha a memória quanto ao seu real e inteiro nome de pia e de registro cartorário. Mas não vejo como possa estar enganado. Afinal de contas, era esse o nome que constava na caderneta de chamada da turma em que, por um bom pedaço de tempo, estudamos juntos no Grupo Escolar Gabino Besouro. Prova disso é que era o nome que eu ouvia, 

quase todo santo dia, da boca da Professora Lurdinha. Isso, quando ela entoava os nomes de todos os alunos, obediente a uma canônica ordem alfabética, por trás dos seus óculos de fundo de garrafa, espremendo as palavras nos lábios e chuviscando em quem se sentava na primeira fila. Quando, então, lá vinha o terceiro José, eis que era ele quem estrondeava desde o fundo da sala:  Presente. 

A não ser, é claro, quando, por uma dessas coisas, não estava por lá. O que mais costumava acontecer nos sábados e nas segundas-feiras. Para os linguarudos, uma artimanha para esticar o fim de semana. Seria injusto omitir, contudo, que, na aula seguinte, lá vinha ele com alguma justificativa. Na maioria dos casos, era a de que havia tido mais uma daquelas crises de asma que o flagelavam. 

Lá vem você com a desculpa esfarrapada de sempre, rosnava a Professora Lurdinha, torcendo a boca, enquanto o fuzilava com um olhar vampiresco. O que assentava bem naquele rosto quadrado e repartido ao meio por um vasto nariz recurvo e pontudo. A cabeça era trepada num pescoço escasso e pelanquento. O corpo atarracado e mal desenhado desmentia as proporções do homem vitruviano. 

Ela tinha toda razão. De tão batida aquela conversa mole, melhor seria que ele ficasse simplesmente calado. O que era querer demais. Ainda assim, ela era benevolente. Se não acreditava, pelo menos ficava na suspeita de que ele poderia estar falando a verdade. Já eu, não tinha como fazer o mesmo. É que tinha toda certeza do mundo de que ele, salvo alguma vez perdida, mentia com a cara mais lisa. Convicção, aliás, calçada em evidências mais do que tiradas a limpo. Até porque produzidas por ele mesmo, em pessoa e com todas as letras. E em se tratando de uma confissão não premiada, tive e tenho comigo que merece credibilidade.

Lembro-me bem. Era hora do recreio e nós dois estávamos a partilhar a minha merenda. Ele nunca trazia a dele, contentando-se com esticar os olhos pidões para as dos outros. E não trazia por motivos óbvios, a tirar da sua calça surrada, dos seus sapatos decadentes e da camisa de manga comprida estafada a olhos vistos, os estremos dos punhos e o alto do colarinho acintosamente puídos. O que era completado pelos livros que davam na cara que eram de segunda ou de terceira mão. Nem é preciso dizer mais nada. Para bom entendedor meia palavra basta.

Comíamos um pão francês cortado ao meio, as bandas amanteigadas por dentro e entre elas uma generosa fatia de goiabada.  Pois bem… Conversa vai, conversa vem, lá ele, sem mais nem menos, resolveu abrir o gibi. Se bem que com a prudência ou a malícia de deixar no ar uma cisma: estava falando sério ou fazia uma brincadeira sem graça? Mas que disse, disse. Havia dias em que amanhecia com uma preguiça danada, sentindo-se como que colado no colchão de capim que simulava amaciar o lastro da cama patente. Em outros tantos dias morria de vergonha de ter de admitir não ter feito o dever de casa, pois que já não havia página desocupada no seu único e gasto caderno Avante. Mas isso não quer dizer que a história da asma fosse inventada. As crises aconteciam, sim. Só que, embora não tão raras, também não eram tão frequentes como ele havia encasquetado de fazer parecer. Umas mentirinhas de nada, absolvia-se. Não prejudicam ninguém. Quando muito ao próprio mentiroso. 

 

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NÃO HAVIA, NO MEIO DA MENINADA, quem o chamasse por José, Raimundo, José Raimundo ou até Zé Raimundo. A não ser eu, que o tratava simplesmente por Zé, todos outros o conheciam, mesmo, era como Zé Fraqueza.

Já dá para imaginar o porquê desse nome de fantasia. Pois é isso mesmo. Acertou. Zé Fraqueza parecia um bilro: uma cabeçorra sustentada por um bastonete esguio de fazer pena, quatro fiapos a lhe servirem de braços e pernas. O que também lembrava muito uma água-viva, já que a extremidade de cada ombro só por um tico não regulava com o lóbulo da orelha do mesmo lado. Caso as águas-vivas tivessem orelhas.

Tão mirrado era Zé Fraqueza, mas tão mirrado mesmo, que as costelas saltavam do tronco, fazendo um desenho que lembrava a armadura nua do casco de uma canoa de tolda. Daquelas que, por aqueles dias, ainda arranhavam o espelho d’água do Velho Chico, subindo e descendo a correnteza e driblando as baronesas. Não falo daquelas baronesas que compravam ou herdavam de graça os privilégios da nobreza. Falo das baronesas que são bocados de chão, com mato e tudo, que, arrancados das margens do rio, viram ilhas flutuantes. 

Ele havia herdado a estranha figura de Dona Isaltina, sua mãe. Ela tinha por pernas dois cambitos de sabiá. Os braços pareciam caniços, os olhos afundados, as maçãs do rosto escavadas e os ombros puxados para a frente, num esforço inútil para se tocarem. Os peitos eram quais dois botões. De tão miúdos, mal se deixavam adivinhar sob os panos que lhe camuflassem o busto. Mas certamente lá estavam. O que ninguém nunca perguntou é se tiveram como estocar bastante leite para aplacar os gritos de fome do Zé Fraqueza, nos primeiros meses depois de parido. Ou talvez tenha sido a gulodice dele que, de uma vez por todas e para sempre, deu fim às carnes daquela mulher.

Por incrível que pareça, havia quem fizesse piada com a magreza de Dona Isaltina. Chegava-se a dizer que bastava um elástico de dois dedos de largura para que ela tivesse um sutiã. Se bem que nem disso carecesse. E ainda que não precisava de muito pano para fazer uma blusa, uma saia ou um vestido. Bastavam dois pedaços de uma daquelas fitas coloridas que garantiam os arremates das tranças das meninas. Uma tira para fazer a parte da frente; outra tira para fazer a parte de trás. E pronto.

 

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Zé Fraqueza era o mais idoso da turma. Já ia pelos quinze anos, a voz anunciando um baixo profundo. Havia sido reprovado três anos seguidos. Mas não se poderia falar em fracassos por causa de burrice. Estava na cara que não era desprovido de inteligência. Muito pelo contrário. Tinha a mente mais afiada do que qualquer um dos colegas de classe. Inclusive eu. 

O que sucedia, pelo que ele proclamava sem qualquer reserva, era que não via sentido em abarrotar a mente com muitas informações que, na sua maneira de ver, não lhe iriam servir de nada. O que ganharia por decorar os nomes das luas de Saturno, principalmente quando nem se tinha certeza de que eram luas ou não eram? Ainda por cima, quando menos se esperava, lá vinha um astrônomo com a   notícia de que uma nova havia sido descoberta. E o que dizer das cores das bandeiras de países que ficavam do outro lado do mundo e que ele já imaginava, de antemão, que nunca poria os seus pés por lá? Do mesmo jeito, o que lucraria lotando os miolos com um monte de datas, com as alturas de montanhas que existem nas estranjas, com as diferenças entre solstício e equinócio e assim por diante?

Do que gostava, de mesmo, era de passar as tardes fuçando enciclopédias na Biblioteca Pública. Chegava, religiosamente, pelo menos dez minutos antes de abrirem as portas e só ia embora quando avisavam que estava na hora de fechá-las. Dava-lhe gosto, mais do que qualquer outra coisa, esmiuçar as vidas de inventores e as manhas das suas invenções. Leonardo da Vinci, então, era quem mais lhe atiçava a curiosidade e semeava as suas fantasias.

Por isso mesmo o enfado que inevitavelmente o abatia, sempre que a Professora Lurdinha declamava as suas remoídas e tediosas lições sobre análise sintática e regências nominal e verbal, sobre máximo e mínimo divisor comum. Zé Fraqueza não podia evitar. Terminava dormindo a sono solto, o tronco curvado para a frente e a cabeça arriada em cima dos braços cruzados sobre o tampo da banca. Chegava a babar. Houve até um dia em que despertou aos gritos. Um pesadelo da porra, tentou redimir-se, enquanto a Professora Lurdinha quase estourou pelas costas, feito cigarra.

 Eu quero lá saber do que se passou no tempo em que Dom João era corno! Foi como certo dia esmurrou as ouças pudicas da Professora Lurdinha. Ela não pensou duas vezes. Expulsou o desbocado da sala de aula e o remeteu direto à sala da Diretoria. Não deu em nada. Pelo que ele disse depois, a Diretora, Dona Eulália Coimbra, apesar da cara de enjoo e da fama de detestável, intransigente e cruel, por algum milagre não o condenou nem ao menos a uma suspensão. Se bem que, caso ela o tivesse feito, ele até haveria de festejar. Dar-lhe-ia um pretexto oficial para escapar da obrigação de acordar cedo e do que dizia encarar a chateza das aulas de Dona Lurdinha.  

A única penitência que lhe foi decretada, por incrível que possa parecer, foi escrever, mil vezes seguidas, em folhas de papel estêncil, uma frase nem assim tão extensa: Nunca mais vou dizer palavrão na sala de aula. O que, no fim, virou foi uma brincadeira, pois que os colegas de classe, eu no meio, até apostaram para ver quem escrevia maior número de frases no lugar dele. Para se ter uma ideia, somente eu escrevi a maldita frase cem vezes, imitando a letra de Zé Fraqueza. Se incorri em algum pecado, venial ou mortal, não estou nem aí. Já vi coisas muito piores nessa nossa República saudosista dos tempos dos barões assinalados. Pelo menos não estou sendo hipócrita.

Andou-se dizendo, à boca miúda, que não foi o caso de um repentino surto de tolerância e piedade cristã de Dona Eulália. E se fosse, seria de se perguntar se ela estaria sendo vítima de algum surto psicótico. Mulher dos seus cinquenta anos, havia casado aos vinte e ficado viúva, sem filhos, uma semana depois dos trinta. O marido havia sido assassinado na porta do Bar do Agobar. Uma briga besta por causa da marcação de um pênalti numa partida entre o Penedense e o Santa Cruz. 

Não é o caso de se afirmar, contudo, que a sua rabugice tenha vindo dessa tragédia. Pelo que sussurravam os mais velhos, Eulália, desde quando meninota, já tinha aquela postura marcial. Para se não dizer que já era marrenta e sempre pronta para algum duelo. Do tipo que perde uma boiada, mas não perde uma boa briga, como se diz. O que, aliás, não confirmava, nem um pouco, a sua expressão devota e de alma genuflexa, quando, dia sim, outro também, durante a missa das cinco e meia no Convento de Nossa Senhora dos Anjos, cantava de cor os hinos pios, recitava o que fosse de oração e ainda por cima comungava. Futricavam que até jejuava, toda sexta-feira.

Era irmã da Pia União das Filhas de Maria e leitora crônica de tudo o que fosse escrito sobre Santa Catarina Labouré. Nunca havia pisado em Paris e muito menos na Rue du Bac. Sabia muito mais, porém, sobre a santa e sobre a Medalha Milagrosa, do que o Padre René Laurentin ou qualquer outro biógrafo da bem-aventurada.

Talvez tivessem razão, portanto, aqueles que atribuíam aquela complacência improvável ao fato Eulália ter sido confidente de Isaltina, que como já se disse e redisse era a mãe do Zé Fraqueza. Haviam sido unha e carne nos tempos de adolescentes. Talvez Eulália temesse que Isaltina, sua cúmplice nas remotas travessuras juvenis, ficasse injuriada com o jeito como ela tivesse tratado o menino. Poderia, então, para se vingar, vomitar alguns podres da confidente e cúmplice nas diabruras juvenis. O que Eulália sabia muito bem que seria demolidor do seu conceito de mulher séria e temente a Deus. 

 

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ERAM SOMENTE ISALTINA E ZÉ FRAQUEZA naquela casa de porta e janela da Rua da Penha, cuja fachada encarava o oitão do já tão falado Grupo Escolar Gabino Besouro. Quase vizinha, aliás, da morada de Dona Lurdinha, a professora de óculos de fundo de garrafa e olhar vampiresco. 

O pai, ainda antes dele nascer, meteu-se no oco do mundo e nunca mais deu o ar da graça. Uns diziam que sumiu fugido da polícia. O que nunca foi provado. Mesmo porque não era do tipo de arranjar encrenca. Outros diziam que se amancebara com uma puta do Camartelo e dera no pé sem deixar rastro. Esta última hipótese parecia mais provável, já que ele sempre teve no currículo a fama de raparigueiro.

 

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PARA DIZER A VERDADE, ZÉ FRAQUEZA TINHA lá um quê de vergonha da sua aparência descarnada. Tanto que nunca tirava a camisa na frente de quem quer que fosse. Mesmo quando tomávamos banho de mangueira, todos juntos, após uma pelada no campinho que ficava no quintal da casa de Antenor. Aquele que era filho do juiz do mesmo nome. Um magistrado, diga-se de passagem, de muita pompa e pouco saber. Mas é sempre assim, galo com esporão rombudo tem de se valer do bico. Tolice. Quem se ilude pensando que engana, muitas vezes mais não faz do que se enganar a si mesmo. Era o caso.

Dizia Zé Fraqueza que o velho era cagado e cuspido um guaxinim. Isso por conta cara miúda que encimava um tronco encorpado e coberto de uma pelagem crespa e bicolor. Para não falar dos olhos redondos e rodeados de pisaduras de um preto instável, do bigode branco, da bolota que lhe servia como ápice nasal e da boca rasgada que quase lhe vinha de uma orelha à outra.

Era um campinho de futebol em tudo e por tudo esquisito: terreno ladeiroso, chão de barro em que se não via um só pé de grama, uma goiabeira e uma mangueira no meio do caminho entre uma meta e outra. De vez em quando um dos atletas de carregação saía contundido: um dedão do pé avariado pelo embate com alguma pedra intrometida; um galo na testa depois de um encontrão com uma ou outra das árvores que, por desaforo, nem por decreto saiam dali; um nariz sangrando em resposta a uma cotovelada acidental ou por querer. Pelo menos, para os casos dos dedões danificados, havia um tratamento de choque que era tiro e queda: a cambada reunia-se em concílio ao redor do acidentado, cada um punha bimba para fora e, finalmente, lá vinha a mijada solidária sobre o ferimento.  Podia arder como o diabo. Mas que era um santo remédio, era. Ao menos pelo que diziam os pacientes. 

Se bem que Zé Fraqueza não era muito bem-vindo àquelas aventuras futebolísticas. Era ruim demais. Fosse na defesa ou no ataque era sempre um desastre. Como goleiro, então, seria impossível encontrar um mais frangueiro. Nem para apanhador de bola servia. Era ronceiro demais e tinha medo de pular os muros das casas vizinhas, quando a bola ia bater nos quintais alheios.

 

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DE PRIMEIRO, ZÉ FRAQUEZA FICAVA SOMENTE NA REPRODUÇÃO dos desenhos das máquinas ideadas por Leonardo da Vinci. Não demorou, porém, para botar na cabeça de montá-las. E não só isso, eis que logo avançou para a intenção de testá-las. Ele já nem mais saía de casa, a não ser para ir à escola. Levava o tempo todo tentando entender aquelas engrenagens visionárias, pensando em desenvolver os projetos, executá-los e, finalmente, dar-lhes utilidade segundo as suas imaginadas destinações.

O seu primeiro impulso foi por fazer o paraquedas em modelo piramidal. Mas desistiu no meio do caminho. Chegou à conclusão de que o velame feito com papel não era o bastante robusto para mantê-lo no ar, quando pulasse da torre da Catedral.

Veio, então, a vez da metralhadora. Mas também foi logo desterrando a ideia. Não tinha como arranjar os onze mosquetes. Muito menos no Penedo. Eram armas de passado remoto e que só poderiam ser encontradas em museus. Não dava para ir em frente.

Terminou achando mais promissor construir o ornitóptero. Leu que seria uma das invenções menos viáveis de Leonardo. Botou então na cabeça que, justo por isso, valia a pena testar a ideia, alimentando a certeza de que, como iria mostrar que daria certo, taparia a boca dos maledicentes. Duvidar de Leonardo, para Zé Fraqueza, era mais grave do que o papa professar uma heresia.

Chegou a me falar sobre a empreitada que estava a se preparar para enfrentar. Pediu-me sigilo, porém. Sabia que, caso os outros meninos soubessem, a goga seria grande. 

Pior, ainda, se Dona Isaltina tomasse conhecimento. Você tenha juízo, menino. Seria suave a primeira advertência. Mas só a primeira, pois logo berraria que ele estava se metendo em uma camisa de onze varas, que aquilo era uma estultícia, que se ele insistisse ela mesma o moeria de pancada. Se você quer mesmo se quebrar todo, eu resolvo isso aqui dentro de casa mesmo. Não se meta a besta. Poderia mesmo esporar Otacílio, o padre idoso e mal-humorado a quem Zé Fraqueza não ousava desobedecer, por razões que a própria razão desconhecia. 

Eu permaneço com a consciência tranquila. Honrei o compromisso de confidencialidade e não disse uma palavra daquilo a ninguém. Nem de longe pensei que ele poderia acidentar-se gravemente, talvez até morrer, caso arriscasse experimentar a serventia do engenho. Mas é preciso me dar um desconto. Como ainda convivia com a minha meninez, não tinha tempo para pensar na morte. Os verdes anos têm a mania de nos levarem a acreditar que somos onipotentes e imortais. Nós e os outros.

E nisso Zé Fraqueza tocou o bonde para frente e construiu as asas com sobras de madeira da marcenaria do Seu Joca, folhas de papelão colhidas nas latas de lixo da Rua do Comércio e penas de galinha catadas no mercado. Afinal chegou o dia em que deu a obra por feita e acabada. Só faltava testar.

 

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SE DE COMEÇO ELE PENSOU EM PULAR DA TORRE DA CATEDRAL, logo entendeu que seria melhor saltar do alto da rocheira, pontualmente de uma pedra saliente que fica por trás do prédio da Prefeitura. Caso não desse certo, pelo menos cairia no rio. Mas logo se lembrou de que não sabia nadar. 

Partiu para outras alternativas: saltar de uma das torres da Igreja de São Gonçalo Garcia, ou mesmo da torre solteira da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Desistiu. Seria quase impossível carregar a engrenagem naquelas estreitas escadas espirais. Terminou concluindo que seria mais fácil alçar voo do balcão que ainda hoje orna a fachada do tal falado Grupo Escolar Gabino Besouro. Melhor, ainda, num dia de domingo. Nunca havia ninguém por lá. A não ser Seu Aprígio, vigia caolho e coxo que, de tão dado a sonecas e roncos vibrantes, era de todos conhecido como cochilante.

Pois foi o que fez Zé Fraqueza naquele começo de tarde. Entrou sorrateiro, subiu a escada, foi até o balcão, montou o equipamento nas costas, escalou o parapeito e saltou. Se bem que saltar não seja bem o caso. Na verdade, nosso herói despencou e foi estatelar-se na calçada. Mas deu sorte. Bem na hora, o santeiro Antônio Pedro ia saindo do seu alvoroçado ateliê, que ficava defronte o tal do Grupo Escolar. Viu o desmantelo. Foi até lá e deitou o ouvido contra os buracos da venta do acidentado. Estava vivo. Ia passando um caminhão e ele pediu socorro. Deu certo. Levaram Zé Fraqueza ao Hospital da Santa Casa de Misericórdia. Foi a salvação.

No fim das contas, Zé Fraqueza havia fraturado três costelas, o braço direito e a perna esquerda. Para não falar no estrago que talvez havia ficado dentro da cabeça, a se tirar do galo enorme que deformava uma banda inteira da sua testa. Duas semanas mais tarde, porém, ele já estava em casa e azucrinando Dona Isaltina. 

Como dizem os antigos (e eu peço licença para ter lá as minhas dúvidas) não há mal que não traga um bem. Naquele caso deu certo. Criar juízo, de mesmo, Zé Fraqueza não criou. Mas se desfez do delírio de ser o florentino reencarnado. Passou a só cuidar da construção de robôs articulados. Nem dava para crer como, à custa de elásticos e borrachas de amarrar dinheiro, andavam sozinhos e mexiam a cabeça, os braços e as pernas. Era como se tivessem vontades próprias.

 

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POUCO TEMPO DEPOIS ISALTINA E ZÉ FRAQUEZA FORAM MORAR EM CORURIPE. Perdemos o contato. Foi somente em dezembro passado que uma abelha me zoou que o nosso herói estava internado no Hospital Portugal Ramalho. Perdera o juízo de vez. Não havia retorno possível. Só milagre. 

Passei o resto da tarde e da noite com a imagem dele a me olhar desde os velhos tempos. No dia seguinte fui visitá-lo. Disse-me um médico, contudo, cheio de dedos, que ele andava muito agitado, não falava uma só palavra e não reconhecia ninguém. Nem os olhos mexia. Pareciam vidrados. 

Desisti de revê-lo. Para quê?  Afinal de contas, ele já estava morto, mesmo. Ao menos, mais morto do que vivo. Apesar de que ainda respirasse. Só que respirar não é tudo. 

 

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