Elenilson Salles (Óleo sobre Tela)
Para Beth,
eis quem me segredou esse causo.

Fosse eu rei do mundo

Baixava uma lei

Mãe não morre nunca

Mãe ficará sempre

Junto do seu filho.

Drummond de Andrade,
Para sempre

A MINHA MORADA HAVIA VIRADO UMA TEDIOSA CLAUSURA. Eram dias de Covid-19 a empestear a cidade. Melhor dizendo: o mundo inteiro. O que era feito mais sinistro pela tortura dos noticiários, pelo estardalhaço nas redes sociais e pelo obsceno duelo entre os sedentos de poder, no plantio de votos a serem mais tarde colhidos.

Há duas semanas que eu não botava os pés na rua. Somente a via de lá de cima. E mesmo assim pelos apertados vazios das telas de proteção que me senti obrigada a fazê-las guardar as janelas. Era preciso tomar cuidado com Astérix, o gato dengoso, de raça imprevisível e encapetado que eu recolhera num terreno baldio. Tornara-se meu amigo de fé nas horas certas e nas horas incertas. E eu temia que, de uma hora para a outra, ele inventasse de montar no parapeito. O que quer dizer que, num piscar de olhos, poderia atirar-se ao vazio ou nele despencar. Não quero nem pensar numa desgraça desta!

              Mas vamos àquela boca da noite. Além de Astérix, enrodilhado e cochilando na prateleira mais alta da estante, éramos, somente, minha irmã e eu. Por uma dessas coisas, ela tivera a imprudência de desdenhar da ameaça de contágio e viera dar um sopapo na minha solidão. E na dela, também. Fazia dias que não nos víamos. Contentávamos, à força, com as prosas telefônicos em que voz e imagem se conchavam. A tecnologia nos socorre mas também nos escraviza.

Estávamos cada uma no seu canto: ela largada no sofá e eu aboletada em uma cadeira de balanço. Entre ela e eu media-se uma distância de pelo menos dois metros, como receitado pelos entendidos.

Só de vez em quando era que trocávamos duas ou três palavras. Os nossos olhos estavam de mesmo era grudados na televisão. Revíamos o derradeiro episódio de uma novela depressiva que já contava um monte de fastidiosas exibições. Daquelas que se esforçam em falar de conspirações, ingratidões, traições, roubos, assassinatos e desenganos. Como se não fosse o sopro de esperança o melhor dos empurrões que prometem a felicidade. Para quem, contudo, não tinha o que fazer e andava aflito a catar ocupação, até aquela enjoada recorrência era melhor do que nada.

Nisso, ouviu-se um rangido espectral que vinha da porta da frente. E foi quando meteu-se sala adentro uma mulher de cara emburrada, queixo empinado, passadas medidas e contadas, pálpebras penduradas sobre um olhar hostil. Estava vestida de preto da cabeça aos pés. Mãos esquálidas saltavam dos punhos das mangas compridas. Os cabelos negros, puxados para trás, inauguravam a suspeita de um cocó a lhe ornamentar a nuca, cuja fixidez era decretada por dois grampos que o espetavam em rotas convergentes. Não sabíamos quem era nem de onde vinha nem a que veio. Muito menos qual a afoiteza em que se fiara para insultar a minha privacidade.

Mesmo assim, não fizemos nem dissemos nada. Ficamos mudas que nem portas e estáticas como que acorrentadas a uma âncora imaginária. Não sei se rés da surpresa, da incredulidade ou do medo. Mas isso não importa nada agora.

O que interessa é que a mulher também não deu uma palavra. Sem vacilar, atravessou a sala e foi direto para um quadro que se via pendurado na parede que separa a sala de visitas dos odores e dos quefazeres da cozinha.

Era um retrato da minha mãe. Pelo menos fazia de conta que era. Eu o teria pintado anos atrás, enquanto ainda narcotizada pelo luto inaugurado por sua morte repentina. Um daqueles dias em que, num acesso de romantismo ou presunção, acreditei ser abençoada com um talento que nunca tive e, pelo visto, não terei jamais.

Pelo visto, eu teria copiado a figura de uma foto de um colorido desbotado, 13×18, de quando ela mal chegara às vésperas dos sessenta anos de vida e quarenta e poucos de um segundo casamento um tanto ou quanto desastrado.

Preferi ampliar a imagem. Ficaria mais vistosa. E foi o que fiz com o socorro de um pantógrafo decrépito que há dias descobrira no depósito que me cabe no subsolo do prédio onde moro. Até hoje não sei quem abandonou aquele engenho por lá. Mas o que interessa é que estava lá. E que lá estando foi-me de grande serventia para derrotar a minha falta de destreza para reproduzir a imagem à mão livre.

Também se diga que eu o havia pintado, ou feito de conta que o fiz, espalhando tinta acrílica. Usar tinta a óleo infectaria o apartamento com o cheiro ativo da terebintina. O que não seria bom: nem para Astérix nem para mim. Poderia até ser que terminássemos intoxicados. O que seria muito pior. Tanto mais naqueles dias de quarentena, em que a lotação dos hospitais seria um empecilho para que conseguíssemos cuidados médicos.

Quem quisesse que mangasse da minha aventura como pintora de improviso. O que pesava era que eu achava que não andara tão mal assim. Pelo menos eu. Salvo pelo nariz e pela boca de mamãe. Não houve jeito de ao menos dar-lhes uma aparência de serem boca e nariz. Mas lá estavam, sem tirar nem pôr, os olhos claros e aqui e ali inquietos da minha mãe. E com eles aquela quase permanente expressão festiva. Digo quase permanente, pois que de quando em vez nublado por um ar de desalento. Talvez denúncia de alguma coisa malvada que a roía por dentro.

Dava, sim, para decifrar, sem tanto aperto, quem estava ali retratado. Mesmo sem boca e sem nariz. Pra que mais? Já vi obras que ressaem pelo infrequente. Eu mesma sou fã de carteirinha da arte de Amedeo Modigliani. De vez em quando, aliás,  pego-me a sondar esse ou aquele retrato pintado por ele. Chego a passar horas e horas nessa contemplação reverente. Talvez seja porque nunca me dei por esclarecida sobre de onde vinha da teimosia que o fez omitir, tantas e tanta vezes, as mensagens anunciadas nos olhos dos seus modelos. Mesmo quando se atirou, aqui e ali, a retratar Jeanne Hébuterne. Ela que ainda quase adolescente concedeu-lhe o corpo e a ele escravizou as emoções. E ao final doou a própria vida à sua memória.

  Por que também eu não podia subestimar detalhes tão irrisórios? Venta e boca são minúcias que não importam tanto assim. Além do mais, nunca gostei mesmo do esguio pau da venta encurvado de minha mãe. Menos ainda dos seus lábios esgotados e reduzidos a duas linhas pálidas pela inclemência dos anos. Dos olhos, contudo, deles eu gostava. Principalmente quando não se acanhavam de sorrir aquele sorriso espaçoso que ela sorria.

***

EU NUNCA CONHECI UMA MÃE COMO A MINHA. Embora não seja tão rara uma história de vida com tantos altos e baixos. Ou até mais. Casou-se duas vezes. A primeira, ainda adolescente, com um empolgado infante do Exército verde-oliva. Mal viveram juntos, contudo, sob o mesmo teto. Como andava a mil a segunda grande guerra, foi servir na ilha de Fernando de Noronha. Jamais retornou. E até hoje não se sabe se foi abatido por uma bala perdida ou pelo estilhaço dispersado por uma granada nem se foi assassinado num embate selvagem com um desafeto ou esquartejado e devorado por um tubarão na Enseada da Caieira.

Esse não saber deve tê-la machucado, como é de se imaginar. Mas foi coisa que ficou jogada no passado. Pelo menos no que parecia ser. Como é mais do que sabido, a nossa mente nem sempre nos diz tudo, deixando muitas mágoas e aflições enterradas no inconsciente. Quanto mais a quem, como eu, estava do lado de fora da sua cachola.

Era comum ela dizer que quem morre é de morrer de um todo. Até por que, como sentenciava, não há sentido que se fique apresando uma alma por aqui. Costumava apregoar que morrer não é infortúnio e muito menos castigo. Morrer é o custo natural de haver vivido. Seria querer demais que a natureza desse somente ao homem a bênção ou a penitência da eternidade. Não seria justo com tudo o que é de ser vivo que anda por aí. As discriminações e as exclusões são obras do egoísmo e da prepotência dos homens. Eles é que se deixaram embriagar pela vaidade de serem pensantes e caminharem eretos.

Ficarem as almas por aqui zanzando serviria para quê? Só para que assombrassem casas e assustassem os viventes? Ou então para que se plantassem nas encruzilhadas, encenando visagens que convidam os latidos dos cachorros, arrepiam os gatos e espantam os passantes e as montarias dos viajantes? Seria rebaixá-las demais.

Talvez por pensar assim foi que não demorou muito a se casar novamente. Agora com um homem que tinha idade para ser seu pai: um funcionário público recém-viúvo e pai de uma penca de filhos. Na certa nem pensou nas tempestades que teria de apaziguar. Pior do que isso, porém, havia sido regressar, com o rabo entre as pernas, para debaixo das asas da mãe e para as rédeas das cobranças do pai. Daí por que foi logo casando. E foi assim que ainda por cima andou emprenhando um monte de vezes, embora só seis filhos tivessem vingado.

Teria uma mexeriqueira batido com as línguas nos dentes, espalhando que os dois viviam dentro de casa como cão e gato. Mentira. A verdade é que, muito mais idoso do que ela, meu pai não conseguia engolir os ares dos novos tempos. Eram para ele irreverentes e escandalosos. Não havia jeito, por exemplo, de aceitar as nossas minissaias sucintas e os nossos biquínis miúdos. Nem os agarramentos das filhas com os namorados, eis que, conforme recriminava, qualquer daqueles abraços era sinônimo de xumbrego. O que para ela não passava de uma tola intransigência. E por isso mesmo continuava a cortar e costurar aquelas mesmas minissaias abreviadas e aqueles biquínis resumidos. Além de estimular os namoros das donzelas, deixando claro que a vida era curta e que é preciso aproveitar.

Ainda havia aquela mania que ela tinha de muitas vezes contestar o óbvio. Talvez um capricho que lhe vinha da adolescência interrompida ou um prazer travesso de alfinetar o marido. Uma estranha maneira de experimentação. Como no caso, entre outros, em que ela esperneava quando lhe diziam que o homem havia pisado o chão da lua. Ela só faltava estourar pelas costas. Isso era conversa para boi dormir.

Também se abusava quando vinham lhe falar de céu e inferno. Para ela, um e outro estão aqui mesmo. Não seria lógico que qualquer um, por um pecado só praticado em vida, pudesse ter de levar a eternidade sendo torrado nas fornalhas de Satanás. Mas não se desfazia do seu escapulário de Nossa Senhora do Carmo nem abandonava o seu gosto de compor mesas brancas nem deixava de ouvir uma prédica do seu pastor de preferência. Ela era, na verdade, católica, protestante, espírita, umbandista e agnóstica, tudo ao mesmo tempo.

Não é porque era minha mãe, não. Mas o melhor dela, mesmo, era o exercício da ternura. Nunca negava uma palavra ou um socorro a quem que fosse. Sabia ser, ao mesmo tempo, mãe dos seus filhos, amiga das suas amigas, socorrista de gregos e troianos. Até parteira muitas vezes andou sendo. Além de no meio da noite ser chamada para medir a pressão arterial de um, aplicar uma injeção em outro e daí por diante.

Foi essa a mãe que conheci. E é mais do que evidente que só posso falar dela como a vi e senti no dia a dia. Quem quiser que diga diferente. Todo mundo sabe que há pessoas que, para se convencerem de que são felizes, carecem de ver o mundo inteiro em farrapos. Tenho horror a esse tipo de gente!

Aceitei a morte da minha mãe porque não tinha jeito a dar. Não faço milagres. Mas continuo entendendo que mãe não deveria morrer nunca. Embora concorde que se estaria cobrindo um santo para descobrir outro. Decretar que um filho nunca venha a assistir a morte da mãe, é também, ao mesmo tempo, sujeitá-la a assistir as mortes dos filhos. Não seria justo. Mas não vamos levar conversa mais à frente. Como não sou nem tenho ambição de ser Deus, fica esse meu dito pelo não dito.

***

MAS NÃO DURARAM MUITO AS MINHAS MATUTAÇÕES SILENCIOSAS. A mulher de pálpebras penduradas ergueu as duas mãos ossudas, arrancou o quadro da parede, acomodou-a debaixo do sovaco e, sem rodeios, aprontou-se para carregá-lo. E só então esticou as vistas para a nossa perplexa imobilidade e disse com uma voz ríspida de quem destila indignação: Isso não é para estar aqui.

Foi só então que Astérix levantou-se, esticou cada uma das pernas num alongamento ritual, corcovou a coluna, olhou a mulher de preto, arrepiou-se todo e a desafiou com chiado raivoso. O que foi tempo perdido. Ela nem deu confiança de lançar-lhe um olhar.

Deu-nos as costas e percorreu, no rumo contrário, o caminho que havia cumprido quando chegou. Deu para ver que era como que fizesse questão de gastar o mesmo número de passadas. Vencido o vão da porta, ela a fechou com a brutalidade de um javali acuado. O baque deve ter ressoado pelo prédio inteiro.

Continuamos mudas e estagnadas. Astérix regressou à sua atrapalhada madorna. Sentadas estávamos, sentadas continuamos. Quando muito trocamos olhares de incredulidade. E se fizemos alguma coisa foi simplesmente contemplar, em silêncio tumular, o prego em que o quadro estivera pendurado.

Dez ou quinze minutos mais tarde, quando pouco, foi que retomei consciência de mim. Um calafrio varreu-me da cabeça aos pés. Olhei para a minha irmã e dei fé que ela chorava desconsolada. O corpo inteiro tremia como vara verde. Estava na cara que tinha certeza de que havia vivido uma experiência paranormal. Aquela mulher de preto não era de carne e osso. Não é de estranhar, portanto, que a estupefação da minha irmã tivesse virado pavor.

Não era o espírito da nossa mãe. Disso tínhamos certeza. A mulher em nada se parecia com ela. Nem de longe. E não tinha lógica que, depois de morta, a sua aparência tivesse mudado ao ponto de não ser reconhecida.

Veio a suspeita, então, de que a mulher de preto era uma mensageira vinda de outra dimensão. Uma entidade que vigiava e disciplinava os desencarnados que teimavam em não abandonar o mundo dos vivos. Aquele retrato poderia ser um testemunho da insurreição da minha mãe contra a realidade da sua morte repentina. As suas filhas ainda precisavam dela. Tanto mais naqueles dias em que eu andava sentindo-me sitiada pela multidão de vírus impiedosos e invisíveis que infestavam corpos, terra e ar, na esperança de também destroçar-me os pulmões e matar-me por sufocação.

Logo eu, a ponta de rama, nascida prematura e vítima de uma infância maltratada por uma saúde hesitante. Mamãe teria fugido do outro plano para vir   proteger-me. O GPS tomara por ponto de destino aquele quadro que, bem ou mal feito, fiel ou não à sua imagem, havia enviado o SOS. Tanto mais quando eu, a olhá-lo com olhos marejados, não me cansava de silenciosamente invocá-la, como se o fizesse a Madre Teresa de Calcutá ou a Irmã Dulce dos Pobres.

E não era para menos. Depois de tanto tempo enclausurada, eu já me enxergava paranoica: lavava as mãos mil vezes por dia; passava álcool em gel em tudo o que era parte do corpo, cabelos, tampo de mesa, maçanetas, cabo de vassoura, óculos, telefones portáteis e por aí vai. Tomava banho cinco vezes por dia, ensaboando-me com um esmero tal que não sobrava um só pedaço do corpo que não fosse esfregado. Só saía de casa com o nariz e a boca enfiados numa máscara, camisa de manga comprida e mãos enluvados. Ainda assim a pulso e somente quando não havia jeito de não fazê-lo.

A segregação, mesmo quando a impomos a nós mesmos, mexe com a cabeça da gente. Brincou não leu, é pior a emenda do que o soneto.

***

NÃO SEI SE ALGUÉM VAI ACREDITAR no que eu ainda teria para contar. Tudo bem. Ninguém é obrigado a dar ouvidos a uma narrativa como esta. Reconheço que desde o começo soa inverossímil. Talvez até ridícula.

Mas ainda assim eu gostaria de fazê-lo. Nem que fosse como um desabafo. A verdade não combina com encher de caraminholas as cabeças dos outros. Além do mais, desabafo não é evidência de fraqueza. Sempre achei que não é só por não termos como explicar um fato que ele simplesmente não aconteceu ou não tem como acontecer. Há tantos mistérios no céu quanto na terra e no meio do caminho entre os dois.

Pois fique sabendo que no dia seguinte, mal abri os olhos, estiquei-me toda, desalojei Astérix que ressonava bem acomodado entre as minhas pernas, livrei-me do lençol, tomei coragem e levantei-me de uma vez,  uma questão começou logo a me fervilhar nos miolos. Que história era aquela de um retrato da mamãe pintado por mim e pendurado na parede que separa a sala de visitas dos ensopados e das frituras da cozinha? Eu lá nunca pintei nada! Aliás, nem o sete eu sei pintar. Para completar, eu nem gosto de retratos pendurados nas paredes. Quando muito uma paisagem marinha. O que vem a dizer que todo aquele enredo não passou de um delírio. Um delírio quase sólido, convenha-se, mas ainda assim um delírio.

Mesmo assim, achei de ir investigar se o prego ainda estava na parede. E eis que não havia prego nenhum. Nem mesmo um buraco que desse testemunho de que ele alguma vez esteve lá.

Mas vamos ter de ficar por aqui. Desculpe pela abrupta descontinuação do ditado. É que é hora de pegar o álcool em gel e assear as minhas mãos, o teclado em que estou digitando esse arremedo de relato de respeito e os braços metálicos da cadeira em que me tenho agora mesmo bem sentado.

 Ponta Verde, em Maceió, manhã de 28 de março de 2020

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