NINGUÉM SE DEU CONTA DE QUANDO MARIA JOANA subiu em um pufe enroupado com couro bovino e escalou o guarda-corpo da varanda. Uma vez lá trepada, respirou fundo, arregalou os olhos e esticou as vistas lá para baixo. Pôde enxergar, então, tudo o que, fora do anteparo dos capitéis dos coqueiros, bulia-se por si ou era pregado no chão. E se espantou como as coisas parecem miúdas e banais, quando olhadas de longe. Assim como acontece com os azares, os fracassos, as aperturas e os desesperos dos outros.
O certo é que, quem quer que tivesse assistido a cena, seguramente diria que Maria Joana não estava fora de si. Antes estava tão decidida quanto um felino, quando dá o bote contra a sua presa. Quem a estivesse observando, portanto, só poderia dar testemunho de como ela não titubeou: fez o sinal da cruz, pelo jeito gemeu uma prece, deixou-se escorregar e mergulhou no vazio escancarado à sua frente.
Mas eis que, por mais que Maria Joana esperasse o baque, era como se ele não fosse chegar nunca. Foi só então que entreabriu os olhos e logo lhe veio a surpresa: em vez de despencar, tendo o chão por endereço, o seu corpo afoitamente planava como se ela fosse um carcará ou coisa parecida. E podia ver, lá de cima, sem que nada se enfiasse no meio para atrapalhar, a imensidão do repousado mar da Ponta Verde, os indícios dos seus arrecifes guardiões, o cinturão de edifícios grã-finos que sitiam a enseada e aquele mundo de gente, em premeditada seminudez, que naquela hora do dia ainda namorava o sol. Embora ele já tivesse acalmado o braseiro e agora se aprontasse para transmontar o horizonte.
Chegou a estender os braços para a frente, remedando o Clark Kent fantasiado de super-homem. Mas estava mais do que claro que não era uma emigrada do planeta Krypton. Nem tampouco um anjo de candura, com cara de bebê ariano e asas alvinitentes. Era gente daqui mesmo. Era maceioense da gema. Nascera e havia sido criada na Grota do Cigano.
Mesmo tendo medo de altura, teve ânimo para inclinar a cabeça. E foi quando avistou, lá longe e no que parecia o quintal da cidade, os barracos pendurados na encosta e as ruelas em que, às margens de esgotos a céu aberto, encaram-se fileiras de moradias de carregação. Mesmo assim, ainda havia crianças que vadiavam nas beiradas das línguas negras de água pestilenta e até atravessavam a nojeira com os pés descalços. Dois mundos, poderá ter matutado: cá, a impaciência obscena dos que já têm muito mas ainda querem muito mais; acolá, a resignação aflita dos que não têm nada e ainda amargam a certeza de que jamais terão. Duas bandas da mesma lua, em que aquela que conhece o sol, aturdida pela luz, não dá a mínima para a que jaz afundada nas trevas.
E foi como se um grito lhe rasgasse o juízo. Vinha para cobrar que ela não se deslembrasse das privações que lhe vieram da pobreza extrema, esta que foi a sua única herança. Nem do filho que fugiu da polícia depois de praticar um descuido na Rua das Árvores, para ser achado, dias depois, com a boca cheia de formiga. Nem da filha mais velha que se perdera aos doze anos e agora varava as madrugadas caçando homens, ou mulheres, na ponte do Salgadinho. Nem dos dois netos mais velhos já viciados em cheirar cola de sapateiro e estagiários no ofício do tráfico de drogas. Também não se deslembrasse do berço, ainda que agora remoto, em que os seus ancestrais, como crianças negras, adormeciam acalentados pelos gemidos que assombravam as senzalas. Nem se fizesse cega ao fingimento que salta da pregação dos homens que simulam ser apóstolos da liberdade, da igualdade e da justiça. São os primeiros a nem se deixarem tocar por um remorso, o mais raquítico que seja, pelas opressões que encenam, pelas desigualdades que cultivam e pelas iniquidades que semeiam. Mesmo quando se prostram aos pés dos tabernáculos, dão-se as mãos e contritos recitam o Pai Nosso que há de estar no céu.
Talvez tenham esquecido que se a injustiça agride a indiferença esmaga. Mas é que só assim, repousados em tamanha frieza, podem se dizer em paz com as suas consciências. E nisso, ao deitarem as suas cabeças nos travesseiros recheados com penas e plumas de ganso, poderem adormecer e sonhar o sonho que só deveria ser sonhado pelos justos.
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O DIA AINDA NEM SE ACENDERA DE UM TODO. Ainda assim, Maria Joana já abriu os olhos importunados pela remela, escancarou a boca num bocejo ruidoso, esticou-se toda e certificou-se do sono dos três netos miúdos e barrigudos que, naquela noite chuvosa, dividiram a cama com ela. Lá estavam eles, como haveriam de estar: um por cima do outro, inconscientemente a disputar o mesmo lençol de um branco encardido, aqui e acolá esburacado. Os dois mais velhos viviam no oco do mundo. Raramente apareciam para pernoitar em casa.
Já sem tardança levantou-se de supetão, enterrou os pés no chão e percorreu o quarto qual gato a vaguear em teto de zinco quente. Cuidava para não pisar em qualquer uma das cinco filhas que, naquela manhã, ressonavam em esteiras de palhas trançadas e emparelhadas ao pé do seu leito ecumênico. Não teria nem tempo para passar o café.
E mesmo se o tivesse, ficaria nisso. Era fim de mês e não sobravam reais para ao menos comprar os pães que alimentariam o café da manhã. A caderneta da padaria já não aceitava novos penduras. Teria de aguardar até que pusesse o mixe salário no bolso, para então honrar o que devia e afinal resgatar o crédito.
Ao seu ver, era muito mais certo deixar para os demais o que restou da macaxeira da janta da véspera. Um quase nada que lá estava afogado na água gosmenta que meava a panela de alumínio Penedo. Por quase nada que fosse, daria para enganar as barrigas dos meninos. E também as das suas mães vivedoras e intrigadas com o trabalho. Ela se viraria no emprego.
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TINHA PRESSA. Não chegaria a tempo, caso não montasse no ônibus antes das seis. Seria, como já sabia de mais da conta, uma tirada comprida, arrastada, enfadonha e farta de solavancos, até que finalmente chegasse à Ponta Verde. Cochilaria em pé, como sempre, apesar do empurra-empurra, da catinga de sovaco e das paradas enervantes. Às vezes até tinha de aturar que algum cabra de peia, aproveitando-se do aperto, roçasse o falo teso na sua bunda desmontada pelos anos.
Já era tirar a sorte grande que não subissem no ônibus dois ou três sujeitos mal-encarados e, de armas em punho, fossem arrecadando celulares, bolsas, sacolas, relógios, trancelins e até as marmitas dos operários. Não passavam em branco, nem mesmo, os patuás, os escapulários de Nossa Senhora do Carmo e as fitas coloridas do Senhor do Bonfim
O que fazer? capitulava Maria Joana O que não tem jeito a dar sem jeito está. Além do mais, não seria inédito que só viesse a quebrar o jejum no emprego. Apesar de há muito haver sentido que a patroa, que acudia pelo nome de Bartira, não se agradava nem um pouco do que considerava um abuso de confiança.
Na verdade, isso sim, dava na cara que ficava era pocando de raiva. O que não era surpresa, vindo daquela loura a pulso, de quartos amplos, cabelos invariavelmente armados e unhas vaidosamente aparadas, lixadas e pintadas. O que tinha de posuda tinha de mão de vaca. Sovina, até mesmo, quando se tratava de entregar um sorriso ou ensaiar um gesto de tolerância ou afetividade. Até mesmo com o senador, seu marido Oscar.
Dava conta de tudo. Reclamava até mesmo do que dizia baixas nos depósitos de farinha, arroz, feijão e sal. Também nos potes de manteiga e de bolachas. Não se conformando, ainda revistava, a cada boca da noite, as trouxas de cada serviçal que, terminada a jornada de trabalho, arrumava os trecos antes de tomar o rumo de casa.
Empregado é empregado, proclamava ela com a sua cara de quem comeu e não gostou. Tem de ser tratado como empregado. Ou fica logo ousado e cheio de vontades.
Maria Joana mal resmungava, mordendo-se por dentro. Tinha muita estrada percorrida. Desde menina que começara na cozinha dos outros. Aprendera muito cedo que, para gente como ela, não tem futuro discutir as ordens dos patrões. Não leva a lugar nenhum. A não ser perder o emprego e ficar com as mãos abanando. Coisa de que ela fugia como o diabo foge da cruz. O que haveria de ser das filhas e da meninada que carregava nos ombros?
Mas o que não podia fazer era ficar de pança oca e roncando. Carecia de sustança para dar conta das rotineiras e cansativas tarefas de cada dia. Era uma vida de cativa, sim. Mas não conhecia outra e não via saída. A indigência desmonta o fardo da autoestima.
Embora timbrada como cozinheira, também tinha ao seu cargo ajudar a arrumadeira a varrer o apartamento dos patrões, espanar os móveis, passar um pano na área de serviço, dar a comida do cachorro, abrir tudo o que era de janela, botar no seu canto o que estava fora do lugar. O que não a desencarregava de a cada manhã lavar a louça Vista Alegre, os talheres Christofle e os copos e taças de cristal que amanheciam aos montes na cuba da pia da cozinha, quando alguma festança varara a madrugada. Bem como de preparar e servir o desjejum, em que sempre sobravam os queijos e presuntos importados. Além de outras iguarias de que só havia ouvido falar depois de arranjar aquele emprego.
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NÃO ERA DA MISSÃO DE MARIA JOANA, nem das outras serviçais, ir à padaria buscar o pão de cada dia. Isso era tarefa a cargo de Faustino, o homenzarrão que, numa briga num puteiro de quinta categoria, tivera a orelha direita arrancada a facão. Ele acumulava as funções de motorista, segurança e pau pra toda obra do senador. Havia até relatos de missões bem cabeludas e disciplinadamente cumpridas pelo ferrabrás. Contavam, inclusive, sobre surras, a torto e a direito, em adversários políticos, vaqueiros e campesinos ditos desaforados e quem quer que fosse que tivesse desobedecido ou simplesmente desagradado ao todo-poderoso. Isso para não falar de narrativas que davam conta de assassinatos a troco de queima de arquivo. Basta olhar atravessado pro senhor pra virar logo meu inimigo de fogo a sangue, chaleirava o gigante mavu.
Os da mesma corriola partidária garantiam que tais enredos não passavam de calúnias; os adversários sustentavam que espelhavam a verdade nua e crua. Mas já se sabe que uma das mágicas dos políticos é converter a mentira em verdade e transmudar a verdade em mentira. Tudo segundo o aconselhamento da oportunidade e da conveniência. Demonizar ou canonizar depende do dia e do interesse. A circunstância faz a hora e eles mesmos se encarregam de canonizar os seus motivos.
Já a arraia-miúda não tinha outro caminho senão ficar enturida. É que só era o que ela podia fazer e dela se podia esperar. Nas terras de poucos senhores e muitos servos, manda quem pode e obedece quem tem juízo. Quando muito, havia aquela gente que, mesmo peada, ainda arriscava a um cochicho às escondidas. Se bem que assombrada pelo ditado que dá a certeza de que mata tem olhos e parede tem ouvidos.
Afinal de contas, pelo que proclamavam os acólitos do legislador, era de tirar o chapéu para quem como ele, vindo do nada, agora esbanjava fortuna e poder. Enriquecer tão rápido, nunca fazendo outra coisa que não fosse política, só milagre ou muita competência. E era nesta última que os puxa-sacos apostavam.
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VOLTANDO A MARIA JOANA, somente saberia o que fazer para o almoço quando a madame resolvesse dar o ar da graça. O que nunca acontecia antes das onze da manhã. Era preciso esperar que ela acordasse quando bem quisesse, escovasse os dentes, tomasse o seu banho que durava uma eternidade, lambuzasse o corpo todo com cremes de beleza, pintasse os lábios e as beiradas dos olhos e, depois de uma hora de hesitação, decidisse pela roupa que haveria de vestir e pelo calçado em que haveria de meter os pés. Até parecia que a cada manhã se embonecasse para ir a um casamento de gente grande, a algum encontro furtivo ou a alguma solenidade ensopada de enfastiantes discursos invadidos por frases feitas. O mundo dos políticos é assim mesmo. Tira-se vantagem de tudo. De vento faz-se tempestade e de enterro comício.
Quando o Senador estava em Brasília, até que o trabalho não era tanto. Mas quando ele retornava, em avião da FAB, para esticados fins de semana ou para gozo das tantas férias e recessos que davam ares de que não terminariam mais nunca, tudo ficava mais complicado. O apartamento estava sempre lotado de eleitores e ditos amigos que (pelo que maldava Bartira), eram menos afeiçoados a ele do que ao cargo. Mas ele não dava importância a isso. O que lhe dava gosto era ter-se cercado de mesuras subservientes, ainda que interesseiras.
Era sempre um comboio de gente que não acabava mais: prefeitos, deputados, vereadores, juízes, promotores, desembargadores, empresários, bajuladores desocupados, papagaios de pirata e por aí vai. Muitos chegavam a madrugar, pelo que tinham de ficar esperando, por horas e horas, no vestítulo do edifício ou do lado de fora.
Durante as noites, então, era aquela profusão de uísque, vinho, champanhe, licor e tudo o que é espécie de canapé. Os vinhos eram escolhidos a dedo, erigindo-se as preferências (pelo que se suspeita), muito mais pelo rótulo e pelo preço da garrafa do que por suas reais excelências. Até porque, tratando-se de gente nascida e crescida nestas lonjuras, logo sem intimidade com buquês e aromas, não havia como se acreditar naquele paladar apurado que dava a entender.
Cigarro, Bartira não permitia que fumassem. Afirmava ela que tinha alergia e que o mau cheiro da fumaça empestava o ambiente. O senador, porém, não dispensava, por dinheiro nenhum, pitar o Cohiba que nunca faltava no chique umidor que lhe trouxeram da Inglaterra.
Uma vez ou outra um conviva saía dos trilhos e se retirava aos tombos. Mas ninguém ligava pra isso. Muito menos o senador, que era o primeiro a encher a cara. Havia dias, embora não tantos, em que chegava a dar uma de artista, flagelando os ouvidos alheios com sua voz chorosa de cantor improvisado. Mas ninguém era besta de não representar um deleitamento, abrir um sorriso de forçada satisfação e juntar-se aos outros em calorosas salvas de palmas. Todos diziam que era um homem completo: sabia jogar bem com as palavras, não tinha papas na língua, era mestre em jogo de cintura, negociava como ninguém e ainda se distinguia por sua lábia casanovesca, como cantor e como pé de valsa.
Lincoln, o filho mais velho, seguira as pisadas do pai e cedo engrenara na política. Já havia sido prefeito e, no rastro do senador, começara a construir seu próprio e vasto patrimônio. Os dois do meio e a caçula viviam nos Estados Unidos. Viviam numa cidade de nome tão engrolado que Maria Joana nem ousava pronunciar.
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AOS SÁBADOS E DOMINGOS DOBRAVAM-SE OS ENCANTOS, pois que a multidão de convidados ganhava mais corpo ainda. A não ser quando o senador decidia desfrutar os ares de uma das fazendas em que se dedicava ao criatório de cavalos quarto de milha e engordava um monte de vacas wagyu. Se bem que o cavalo dele era um garanhão frísio, negro como a asa da graúna, inteiro e voluntarioso. Viera num avião fretado pelo ricaço que o dera de mão beijada.
Nem mesmo assim, entretanto, os bajuladores o deixavam em paz. Se ele estava em Maceió, a casa estava cheia; se estava em uma das fazendas, era lá onde pura e simplesmente se alojavam. O que, no fim das contas, fazia o senador encher o peito de orgulho. Sentia-se muito bem sendo foco de tantas reverências de tudo o que era de autoridade e senhor de currais eleitorais. Os encastelados no poder abriam portas para a troca de favores; os donos de votos de cabresto davam-lhe alento eleitoreiro. Sabia muito bem que político sem favorecimentos não vai muito longe. Já o que perde mandato é rolete chupado. Não podia baixar a guarda. Tinha de sempre de estar de olho na próxima eleição.
De vez em quanto Bartira se amofinava e peitava o senador: Eu não sei a troco de que você convida gente que todo mundo sabe que não reza pela sua cartilha. Tempo perdido: A política é a arte de negar, fazendo parecer que se atende, professorava Oscar. E de mentir, convencendo que se está dizendo a verdade. E repetia sempre: Os aliados já são meus. Não careço mais de agradar. Os que ainda não são é que precisam de afagos. E ponto final.
Maria Joana, mesmo lá do seu canto, via e ouvia tudo o que se passava e não conseguia entender como um homem só podia enganar e manobrar tanta gente. E também como vivia com tanta fartura, simulando que se empenhava em ajudar uma multidão que continuava desamparada. Aqueles que, assim como ela, viviam de teimosos. Também estava farta de ver e ouvir o quanto o senador era um na frente de muitos dos seus convidados e outro, completamente diferente, quando eles davam as costas. Apesar de ter tido uma vida sofrida e se ver tantas vezes humilhada por ser pobre e negra, Maria Joana não admitia que alguém tivesse duas caras. Abominava a hipocrisia. Mas era o que ela, naquele meio, estava farta de ver e ouvir. Não é de estranhar que, somando tudo, ela tenha perdido a esperança.
Havia horas em que quase pedia para morrer. Além do mais, já não era fácil andarilhar o dia inteiro naquele apartamento imenso. Somente na sala de visitas já cabiam dez casas do tamanho daquela que o senador arranjara para ela. Dada coisa nenhuma, discordava a filha mais velha de Maria Joana. Comprada. Isso sim. Ela, porém, aliviava: Deixe de ser ingrata, minha filha. Não fosse esta tapera e a gente já podia estar vivendo era debaixo da ponte.
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DIA SIM, OUTRO TAMBÉM, TEIMAVA O RAMERRÃO: faça isso; faça aqui; limpe aqui; limpe acolá. E já era uma lida que não cabia mais em suas pernas inchadas e apinhadas de caroços arroxeados que pareciam corpulentos caroços de jaca. Maltratavam muito e a deixavam sempre exausta. Ela chegara a ir a um posto de saúde. Foi lá que foi atendida, depois de uma espera que durou mais de quatro horas. E em pé. Já o médico, todo de branco e muito bem sentado em sua cadeira giratória, não gastou mais de cinco minutos para, sem nem olhá-la nos olhos, pronunciar o diagnóstico que ela já adivinhava: varizes.
Para completar ainda lhe doíam as cadeiras. Chegava ao ponto de aqui e ali mal conseguir ficar em pé. Quando não ficava travada de vez. Velho é assim mesmo, tinha a mania de dizer. Um dia dói um lado; no segundo dói o outro; no terceiro doem todos dois.
E nisso o tempo foi passando e nada de melhora. Antes piorava dia a dia. Já imaginava que iria chegar o momento em que estaria inutilizada de vez e que teria de ficar escornada numa cama, com as pernas entrevadas. Muito pior, ainda, porque já andava esquecida e via a hora ficar gagá e precisar de seja lá quem seja para mudar a roupa de cama, trocar-lhe a camisola, lavar-lhe as partes, enxugar-lhe as coxas molhadas de mijo e limpar-lhe a bunda.
Uma tarde Maria Joana desacanhou-se e chegou a pedir ao senador que conseguisse um médico para operá-la. Mas ele fez ouvidos de mercador e nunca mais falou no assunto. Tinha coisas mais importantes para se preocupar. Além do mais, dera ouvidos a um vigoroso puxão de orelha de Bartira. O que seria dela enquanto Maria Joana tivesse de ser hospitalizada? Eu é que não vou pegar no pesado.
Suportar o infortúnio não quer dizer resignar-se. Maria Joana, apesar de dar a parecer que estava bem, lá por dentro vivia desarvorada. Concluíra que só depois de morta poderia finalmente ter sossego. E foi a partir daí que começou a matutar sobre o que seria saltar da varanda daquele prédio. Ao seu ver, seria uma coisa rápida e sem dor.
Quanto às filhas e os netos, paciência. Já fizera muito mais da conta. Eles que aprendessem a se virar. A dor é que ensina a gemer. Ela é que não aguentava mais carregar todos eles escanchados nas suas costas.
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NAQUELA SEXTA-FEIRA SANTA MARIA JOANA LEVANTOU-SE NA MARRA. Passara a noite em claro, tamanhas eram as dores que lhe martirizaram as pernas, as cadeiras e os costados. Mesmo pondo aquelas compressas, ensinadas por sua comadre Justina, não teve sossego. Nem botando os pés pra cima e escorados na grade descascada do pé da cama patente. Um verdadeiro deus nos acuda. De um jeito tal que o desconforto virou ansiedade que virou desesperação que virou raiva. Raiva dela mesma, como se isso tivesse sentido e alguma serventia.
Mesmo assim fez tudo como fazia todos os dias e passou a manhã na lida de sempre: mexendo na cozinha e burnindo o apartamento do senador. Depois do almoço, então, a criadagem estava assoberbada com seus afazeres e os donos da casa e o monte de convidados numa algazarra de moer o juízo. Olhavam na TV um jogo entre CSA e CRB. Maria Joana concluiu que chegara a hora de dar um basta naquela desgraceira que como que a estrangulava.
Saiu de mansinho e cuidou para que ninguém se desse conta de quando ela subiu no pufe e aboletou-se no parapeito da varanda. Não dizem que velho só morre de queda, catarro e caganeira? Pois ela, visto que ainda podia escolher, morreria de uma queda.
A partir disso, pelo que já se sabe e seria importuno e enfadonho repetir, fechou os olhos e pulou, certa que a vertigem que a governaria depois de despencar só poderia terminar com seus ossos espatifados e a sua vida exaurida. Só que não esperava que lhe baixasse a mágica dos emigrados do imaginário planeta Krypton e assim pudesse cruzar os céus que nem avião ou bicho que voa.
Lá de cima, arriscando as vistas na contemplação da miséria que enxergava ou de que suspeitava lá embaixo, convenceu-se de uma vez por todas que escolhera o caminho certo. Levara a vida como se fosse um cachorro vira-latas. Ela e quantos mais estigmatizados pela negritude e pela pobreza. Estava certa em dar um jeito de se despedir daquele vale de lágrimas. Seria idiotice acreditar que, algum dia, os nobres iriam abrir mão do poder de arrancar dos outros os privilégios em que nadam. Quando muito, iriam continuar como sempre estiverem: espoliando o povo e arrotando decência.
Foi quando aquele voo começou a agoniá-la. Não tinha porque estar voando. Só estava servindo para atiçar a sua desesperança. Melhor desabar de uma vez e acabar logo com tudo. Encolheu os braços. Não era mesmo Kal-el nem Kara Zor-el, os kryptonianos que por aqui viraram super-homem e super-moça. Aquilo estava sendo mais do que um sonho indesejável ou até um pesadelo. E os bons sonhos e os pesadelos só duram enquanto não acordamos.
Decidiu acordar e dar logo fim àquele delírio que a estava esmagando. Viu-se então desabar em queda livre. Numa afobação tal, aliás, que nem deu tempo para ruminar que os sonhos felizes e os pesadelos, por mais reais que pareçam, carregam sempre a sina de o mais das vezes nem serem lembrados quando acordamos.
O mais certo é que talvez nem tenha havido sonho nem pesadelo. E o que consola é fazer fé que ela nem sentiu quando atropelou o chão. Nem quando o seu crânio rachou-se ao meio e os miolos espalharam-se na pérgula da piscina.