
1
Quando me olho no espelho e vejo a testa se alastrar e a me escalar a cabeça, no encalço dos cabelos brancos que ainda me restam…
Quando me olho no espelho e vejo as ravinas no desenho da fronte, escavadas pela correnteza da inclemência dos anos que às vezes nos maltratam, mas também às vezes nos amimam…
Quando me olho no espelho e vejo as bolsas penduradas nos alicerces dos olhos, como se guardando as lágrimas que não tive a coragem de derramar…
Quando me olho no espelho e não quero reconhecer os lábios que viraram rastros esguios, talvez porque desgastados pelos sorrisos que me recusei a sorrir…
Quando me olho no espelho e vejo as pregas que descendem do assoalho do rosto, plissando o pescoço e contando as histórias dos meus dias peregrinos…
Confesso que não me deixo demolir!
Envelhecer não é se despedir da vida; é, antes, não desistir dela nem duvidar do amanhã.
Mas só vale a pena desde que não assustemos os sonhos maturados nem tranquemos as comportas por onde novos sonhos ainda haverão de nos alumiar.
Mas, também, que não nos sepultemos no banzo do passado e não renunciemos ao sorriso da esperança.
Que teimemos, pois, em comungar cada novo dia amanhecido.
2
É o arqueiro, não a flecha, quem escolhe o alvo a alcançar. Até que a flecha, aqui e ali, pode enfrentar a força do vento e ver seu itinerário importunado. Mas é do arqueiro, não dela, que se pode cobrar a previdência e a destreza.
Não é diferente o que dá com o fanatismo. É ele, não os seus submissos, quem elege a caça a ser apresada ou demolida.
Os seus arautos, qual se dá com os dardos disparados, não se dão conta de onde vêm, não se perguntam para aonde vão, não se importam com os motivos do caçador nem questionam a sua pontaria. Mas, ainda assim, gabam-se de que são senhores das próprias convicções, das próprias escolhas e dos próprios destinos.
3
Dizem os crentes que a morte é a alvorada de uma nova vida. Já os incréus garantem que a morte é ruína, é comando que deleta um arquivo que já perdeu a serventia. Seja assim ou assado, contudo, o certo é que a morte é o ocaso da vida que nos está abençoando ou maltratando. Se viramos, ou não, uma réplica etérea do que fomos em vida, na espera da reencarnação no desassossego dos homens ou na absolvição no Juízo Final, não sei se é graça ou castigo. Fico a pensar no suplício da prorrogação dos aguardos, das angústias, das mágoas, dos medos e do martírio da privação dos nossos amores interrompidos.
4
Na velhice ainda darão frutos; serão viçosos e vigorosos.
(SALMO 92: 14)
Não me convence aquela velha história de que a velhice está na cabeça: o que dizem para dizer que somente é velho quem se reconhece velho. Ou, ainda, que ser velho é questão de livre escolha, sem que contem, muito embora lá estejam, a idade e os rastros que o tempo foi esculpindo pelo caminho.
É verdade, sim, que a velhice é hóspede espaçoso, daqueles que capturam a casa inteira. Nem assim, porém, é decreto que inaugure a mudez do que foi, o ermo do que é e a inutilidade do vindouro.
Ainda que milenar, trazendo no corpo um mundo de vestígios alistados pelas estações, a oliveira jamais renega o destino irrevogável de frutear.
Aceitar-se velho, tanto quanto enxergar-se jovem, é ter passado escrito, presente transeunte e amanhã provável. Não há diferença.
Ser velho não é estar morrendo e muito menos estar morto em vida. Mesmo que a voz tropece, que o olhar encurte, que os músculos se insurjam e que os ouvidos fracassem… Basta que a esperança não esmoreça.
Ser velho não é mais do que ter vivido.
5
Ainda que se nade com um escorpião encavalado nas costas, esbarrar no meio da travessia é humilhar o propósito de consumar uma escolha. E nem adianta se desesperar. Apressar as braçadas bem pode precipitar a picada que, sem tal alvoroço, até poderia se contentar com o tedioso capricho de uma lista de espera. Só há três saídas, portanto: fazer pouco do medo, abraçar a esperança e ateimar no percurso; apostar no acaso, mergulhar e acreditar na sufocação do inimigo; aquietar o sonho, dar meia-volta e tentar regressar ao ponto de partida. Se bem que é verdade que, chegando, chegará vencido, mas se acende a chance de regressar aos começos e talvez ileso. E, assim, poderá descobrir o portal que promete o recomeço.
6
Fiquei a pensar, no meio da importunação da insônia, a que serve e a que se presta negar Deus ou até lavrar sua certidão de óbito. Dizem que quem o faz, por convicção, afoiteza ou capricho, logo se apressa para preencher o vazio que sobrevém. Tal e qual os hebreus que, ao pé do Monte Horebe e impacientes com a tardança de Moisés, logo correram atrás de um bezerro de ouro.
Não sei até aonde chega a verdade.
Seja como for, não nos deslembremos de que os deuses são eleitos pela necessidade imposta pela fé, que é a irmã gêmea da esperança e a pertinaz adversária do desespero. Nem de que Deus, ainda que o mais malvado ou o mais misericordioso, somente se revela àqueles que o procuram e o reconhecem. Ele não se impõe por si mesmo.
Hoje, entre nós, muitos são os que desdenham do Deus de Abrão e de Jacó, enquanto poucos os que ainda louvam ídolos de pau, pedra, ouro, prata, bronze ou cobre.
No que muda, porém, se aprendemos a idolatrar o poder, a luxúria, a opulência e a pompa.
7
O Deus dos hebreus tem muito do que se arrepender.
Tivesse preferido os gatos, não os homens, como sua tribo eleita, delegando-lhes o comando para que dominassem sobre a terra e criaturas que nadam, caminham, rastejam ou voam… não teria sido tão atraiçoado e o mundo seria muito mais humano.
Alguma coisa saiu errada.
Tanto é verdade que os homens já não se vangloriam de que feitos à imagem e semelhança de Deus. Acreditam, sim, que Deus é que é cria deles. E que o criaram segundo as suas próprias imagens e semelhanças.
Isto é, com toda soberba, todas as raras virtudes e todos os muitos vícios de que, ninguém se iluda, esses mesmos homens não se libertam.
8
Todos carregamos os nossos próprios segredos. Sejam eles gozosos, dolorosos, luminosos ou gloriosos, não há jeito de não estarem conosco. E é às vezes tão difícil escondê-los, que porejam em nossos atos, palavras e obras. O que não surpreende e até conforta. Ocultar os nossos segredos não raro mais nos estrangula do que nos alforria.
9
A injustiça agride; a indiferença esmaga.
10
Eu não creio na Justiça dos Homens.
A toga pode até disfarçar, mas não amputa de quem julga a sina perversa de ser homem. E, sendo homem, refém da vaidade, da soberba, da gana de poder.
A razão fracassou na sua missão primordial: calar nos homens o instinto de fera e assim encontrar um jeito de fazê-los humanos.
Pena que não deu certo! Os homens continuam na espreita da mesma presa: o poder. O poder do cetro e do relho, que também é o poder da ambição e da ganância, pois que irmãos xipófagos que compartilham o mesmo fígado. E aprenderam que, nessa peleja sem direito a tréguas, sempre ganha aquele mais manhoso ou perverso.
A Justiça dos homens carece de se aperceber dessa realidade que não há como dissimular.
A realização da Justiça, por juízes e tribunais, há de sempre começar pela desconfiança na sinceridade dos mandamentos das leis artificiais dos homens e pela suspeição dos que se aclamam vítimas, na perseguição do que querem fazer parecer de justiça. Não se pode duvidar das possíveis fragilidades morais dos julgadores ou dos querelantes nem das contradições da condição humana. Justiça desafeiçoada ao senso de humanidade não é Justiça; é injustiça proposital e acintosa.
11
Um rio que morre, natureza que chora, gente que se desespera, homens que se amoitam na indiferença.
Por que ainda a resistir, insone campanário?
Não me digas que é para medir o ímpeto das correntes…. Elas esmoreceram. Não me digas que é para sondar os peixes…. Eles sumiram. Não me digas que é para beber os pores do sol de cada nostálgica boca da noite… eles já quase não têm um espelho d’água para alagar com luz e de cores.
Ou será que você só chora, na delirante ilusão de que as suas lágrimas, misturadas ao que resta do rio, poderão revigorar o caudal?
Pelo mais certo, você só reza uma reza tardia, por esse rio que, tão seu como do santo Francisco que emprestou o nome às correntes de outrora, hoje agoniza pelos desígnios dos homens.
E você, no seu desespero, já não sabe o que fazer.
Será que ainda faz sentido ser guarita empinada no crânio da Igreja das Correntes, a apontar para as nuvens, num hoje murcho grito de esperança?
Esses homens teimam em matar o rio que você contempla. Nem se dão conta de que amputar a natureza é a todos nos matar aos poucos. E entre nós eles mesmos.
12
A velhice não é um melancólico prenúncio do fim da estrada percorrida; é uma etapa a mais da longa caminhada. O viandante até pode já enfrentar a fadiga do corpo… o que não vem a dizer despedir-se dos amores, dos sonhos e do ânimo para perseguir as conquistas da mente e do espírito.
Enquanto se prossegue, estrada afora, sempre lá estão, às nossas vistas, a majestade das montanhas, a poesia sussurrada pelo vento que festeja as flores dos campos, a dança das copas das árvores, os cânticos piedosos dos caudais dos regatos, os voos dos pássaros louvando a eternidade do firmamento. E nisso tudo a exaltação do milagre da vida. Por que a ela renunciar antes de ser tempo?
Ainda existe, no velho, a abençoada memória do sorriso de criança que sorriu, o fulgor indelével da juventude que bebeu com sofreguidão. Persistem, tão vivos como sempre, nos nossos devaneios, nos nossos desígnios, nas nossas esperanças.
O sol, embora tão velho quanto o cosmo, não nos pergunta até quando irá a sua história de holofote a iluminar as cidades e os campos, de afugentar os fantasmas que assustam o silêncio das noites, inaugurando as manhãs
Que como ele amanheçamos sorridentes a cada aurora. E assim, quando o crepúsculo chegar, poderemos encará-lo sem mágoas e desesperos. Ele não será um epílogo… ele será o clímax.
13
Até que me dá gosto estar sozinho, embora repreenda a solidão. Estar sozinho é escolha: é preferir afundar-se em si mesmo, ainda que mergulhado na multidão; estar solitário é desfecho: é ter de se resignar com a invisibilidade, ainda que ao alcance dos olhos, dos ouvidos e do toque dos que o rodeiam.
14
A morte pode não ser a alvorada de uma nova vida… na certa, contudo, é o ocaso daquela que nos está maltratando.
15
O ódio é muitas vezes uma forma desastrada de amar, ou, pelo mais certo, um pranto de autopiedade por se não ter feito amar.
16
A gabação vadia termina por esgarçar a autocrítica do autor; a reprovação malcriada e impiedosa lhe devasta a autoestima. Uma e outra suam o mesmo tipo de gás paralisante: amarrota a inspiração e embota a criatividade.
17
POEMA ANACRÔNICO
A quem serviu talhar tamanho medo
Em dias tais de penas torturantes
Se nem a voz de sinos soluçantes
Da morte amputa o travo tão azedo.
Se as horas são assim angustiantes,
Desastre sobre o quê não há segredo,
Que ao menos valha a fé ou seu remedo,
Mas que não faltem vozes sossegantes.
O medo vem do íntimo instinto,
No susto até confronta o indistinto
E nisso às vezes fere sem tardança.
Melhor, talvez, louvar a boa sorte,
Pregar o riso e não jurar de morte,
Se existe dor receite a esperança.
18
O prejulgamento é oficina de injustiça.
19
Salve mulheres ucranianas, cheias de bravura e de fé.
A reverência do mundo inteiro é convosco.
Sois benditas entre todas as mulheres ( vós, que, ainda que esmagadas pelo martírio, não permitem que as esperanças esmoreçam ).
Benditos sejam os frutos dos vossos ventres ( estes, gementes e chorando, as faces abrigadas na salvaguarda dos seus colos arfantes; aqueles, imolados pela paranoia dos campos de batalha; outros mais, já tumulados em perversas valas comuns )… vós e eles martirizados pela furiosa baba incendiária dos bárbaros das estepes do norte, açoitados pela ira apocalítica da reinvenção de Átila, o reencarnado Flagelo de Deus.
Santas mulheres ucranianas, mães da pátria, irmãs no pranto,
cujas orações não calam,
cujas altivezes não sucumbem,
agora e em todas as horas em que sendo cruelmente desafiadas pela inclemência da morte e pela tragédia do caos.
Amém.
20
Quem não estremece ao ver o sinistro esqueleto descarnado de Bucha, desconjuntado pela celeuma medonha dos bombardeios que desdenham da humanidade dos homens?
Quem não se assombra com as almas aturdidas que assistem a miséria dos corpos mutilados que ontem as hospedavam, agora tombados em poças de sangue que duvidam da humanidade dos homens?
Quem se não apieda daqueles homens de rostos torturados pela impotência e seus lábios retesados pela aflição que desacredita na humanidade dos homens?
Quem não chora com o pranto convulso daquelas mulheres que tropeçam nos corpos dilacerados dos próprios filhos, carregando nos braços trêmulos os soluços daquele que ainda não escapou da tragédia, enquanto amaldiçoam a impostora humanidade dos homens?
Por certo que não são aquelas pedras que contam as ruínas da cidade incinerada; que não são os cadáveres que ao relento reclamam por uma justiça que não haverá de vir; que não são os semimortos que cambaleiam desnorteados, a se desviarem da lava que transborda do magma que ferve nas profundezas de uma ira satânica.
Mas há os que o fazem: Os demônios que falam a língua, bebem o ódio e viram mãos de uma besta apocalíptica que abdicou e caçoa da humanidade dos homens.
21
Eu não tenho certeza de nada. Se alguma coisa eu expresso, não é pela razão de acreditar que levo comigo a verdade… é, antes, pela esperança de que o ouvinte m’a revele. Se escuto o que me é dito, não vem dizer de que dou fé de que esteja ela com quem comigo dialoga e que possa ele m’a demonstrar… é antes pelo aguardo de que me convença da falibilidade das minhas convicções. Sempre há alguma coisa a aprender. E não existe quem não tenha muito a me ensinar. Onde já se ouviu dizer de verdades e mentiras que algum dia não possam permutar os semblantes? Sábios e poetas garantiram que a terra seria plana e até cilíndrica; cientistas sustentaram as teorias da geração espontânea, das enfermidades miasmáticas e dos quatro humores; o Papa Gregório Magno estigmatizou Maria Madalena como meretriz. Ninguém duvide de que não existe tese filosófica, científica ou pia que não enfrente o risco de amanhã ser desmontada. Por que, então, teria eu a soberba de me arvorar em repositório e guardião da verdade? Quem responderia, mais tarde, pelos estragos que sobrassem dos meus enganos, das minhas afoitezas e das minhas teimosias? Persisto a ver prudente não ter certeza absoluta de nada e manter acertado o passo na perseguição do real.
22
A que nos serve viver, se deixamos que os anos despedacem os nossos sonhos, que as dores nos esganem as esperanças, que o desalento nos arruíne as alegrias, que a vaidade nos emperre os pedidos de perdão ou o ódio esmoreça a nossa coragem de aceitá-los? O tempo não nos engana nem é implacável. Ele, como os caudais dos rios, córregos e regatos, simplesmente percorre o seu caminho, sem que tenha aprendido a regressar. Embora fecunde a matriz da história, do mesmo jeito como os cursos d’água avivam a fertilidade dos chãos que visitam. Inútil caçar o porquê, às vezes, pode ser desumano. Ele não é humano. Ele é simplesmente o tempo. E se tentamos apresá-lo ou apressá-lo, somos nós mesmos que nos atraiçoamos. Ele sabe, mesmo sem saber, que viver é renascer a cada aurora, malgrado, muitas vezes, tenhamos de fazer das tripas coração. Não por ser ele maldoso ou cruel… pela simples razão de que ele é o tempo. Estulto desafiá-lo, portanto: sorver com avidez os prometidos gozos do presente, receoso de que o amanhã não venha a acontecer, pode virar o gatilho a desfechar o projétil que, de antemão, destroçará o futuro; confiar na certeza do futuro, protelando os proveitos do presente, pode virar o sorvedouro das promessas esboçadas, plantando, no hoje, sementes estéreis. Insano, pois, maldizer o tempo por nosso destino. Ele não é autor nem personagem do drama, da tragédia, da farsa ou da comédia que encenamos. Nem mesmo quem escreve o libreto ou compõe a melodia que fazem a opereta que protagonizamos. Nós os somos. Ele somente assiste ao espetáculo.
23
Não venho vos rogar compaixão, Senhor. Seria fazer pouco da Vossa onisciência. Sabeis, assim como eu sei, que, a cada vez que insultei o bem, para consumar o mal, sempre estive preenchido pela consciência do malfeito. Posso até ter tentado me iludir, ao fantasiar que não existia mácula no meu ato. E, se havia, de que seria meio cuja nódoa era absolvida por um fim que eu desenhava meritório. Pelo mais certo, contudo, de que me seria de alguma forma proveitoso. Embora convicto de que o graduaria ultrajoso, caso fosse outro o praticante e eu o paciente. Ainda assim, em nada me pesavam as chagas que estivesse a rasgar. O egoísmo é raiz da soberba. Não vos direi, portanto, que não sabia o que estava a fazer, nem tramarei álibis para me esquivar. Mentiria caso dissesse que não enxergava a minha culpa. Eu a enxergava, sim. Só que, talvez, me obrigasse a crer que não haveria de responder por meus agravos ou me entrincheirasse na indiferença dos empedernidos. Também não me atreverei a Vos pedir indulto ou graça, em tributo aos meus acertos. Se os cometi, por poucos ou muitos que tenham sido, não há como possam compensar as lágrimas que fiz serem derramadas. Foram atinos que se deram, talvez, por eventuais lampejos de humanidade. Mas bem podem ter sido disparados por segundas intenções, pela hipocrisia, pela arrogância. Também pela vaidade, Senhor… a odiosa vaidade de simular ser humilde, enquanto se professa o narcisismo. Também pelo fingimento… o repulsivo fingimento de quem beija enquanto atraiçoa. Não acho, pois, que tais duvidosas boas ações possam ser relatadas, como virtuosas, na minha folha corrida. Aquela que está bem guardada em algum dos Vossos escaninhos e que será consultada na hora certa. O que Vos venho requerer, Senhor, é Justiça. E, se assim o faço, é porque sei, muito bem, que não é ela medida por uma balança suspeita, tal qual aquela que, tantas e tantas vezes, envergonha a Justiça dos homens.