
O melro veio com efeito às três horas. Luísa estava na sala, ao piano. (Eça de Queirós, O Primo Basílio) Por que Deus fez os melros e os pardais? (Guerra Junqueiro, O Melro – A Velhice do Pai Eterno) Sur la neige même, le merle nous saluait au réveil. (Jules Michelet, L’oiseau)
ESTAVA CONVICTO DE QUE NÃO ERA ELE MESMO. Não passava do corpo em que o poeta Sabino Romariz** regressara à vida. Tendo os dois aberto o primeiro berreiro em Penedo, ele havia nascido um punhado de anos depois de Sabino. O que também havia dado ânimo para que ele encasquetasse que se tratava da mais pura verdade. Não remoía dúvida, portanto, de que não tinha alma própria. Era um continente com um conteúdo alheio. Nada mais. E era bem por isso que sentia, amava, sofria e poetava tal qual ele. Sem tirar nem pôr.
Como poderá ficar contrariado, caso lhe seja denunciado o nome, vamos fazer de conta que respondia por Ariano. Um Ariano não sei das quantas que nada tinha a ver com o Suassuna: nem na aparência, nem do jeito brincalhão de ver o mundo. Mas vamos ficar assim. Só para que o narrador não se perca no meio do caminho.
Mesmo porque o seu nome é de esgotada importância. Os poetas não são poetas por causa do nome, da cor da pele, da crença ou das histórias de alegrias, amarguras e desassossegos. Os poetas são poetas
porque são poetas. E, em sendo poetas, desvendam o mundo pelo que sentem e não pelo que veem. E é aí que está o porquê de decifrarem o real pela lente mágica da emoção, de dizerem o simples enxergando o sublime,
de transcreverem o excelso como se dele fossem íntimos.
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ENQUANTO AINDA MENINO, Ariano era magro como ele só e tinha o rosto espigado, a voz reprimida, os gestos concisos, o olhar errante. Só não alardeava, ainda, o farto bigode de piaçava domesticada que camuflaria as esquinas dos lábios. Mas isso não era o fim mundo. Como se viria a ver, teve futuro bastante para mais tarde encenlo.
Houve um tempo, quando ainda vestia calças curtas, em que chegaram a sussurrar que estava tuberculoso. E tinha um porquê: tossia feito um bode rouco e cada vez parecia mais descarnado. Além de já se terem tornado corriqueiras as suas faltas às aulas, sempre com a desculpa de ter passado a noite com falta de ar e queimando de febre. Se era ou não era, ficou o dito pelo não dito. O boato foi se derretendo e não demorou para estar esquecido de uma vez por todas.
O que ficou sem dúvida foi que não era muito chegado às preleções sonolentas do professor Anunciado Severo da Cruz. Anunciado era um homem de meia idade, gordo que nem um barrão, a pele tingida de um branco leitoso, a testa mapeada por desfiladeiros, de mal com a vida e comparsa da palmatória.
Mas tudo isso era o de menos. O que mais maltratava, mesmo, era aquela voz antipática de sino desafinado por uma rachadura na borda sonante. Para competir com ela, mas nem tanto assim, só mesmo aquele tal de falar vomitando chuvisco nas fuças dos outros. E o pior, um cuspe depravado pela inhaca do charuto de matriz duvidosa.
Anunciado Severo da Cruz estava sempre engarrafado num monótono terno escuro de casimira, gola da camisa bem arrumada, colete enfeitado com a trilha semicircular caminhada pela corrente do relógio de algibeira, cinto preto com fivela cromada, sapatos de bico fino fanaticamente engraxados e brilhantes que nem catarro em parede, gravata vermelha fatigada de tanto uso, o nó Windsor empoleirado na depressão que medeia as duas saboneteiras. Talvez fosse daqueles que acreditam que o invólucro vale mais do que a encomenda. Incauto. Não é a casca que adocica o fruto. A dignidade e a sabedoria de um magistrado não moram na toga.
Não havia um porquê para tanto requinte. Mas era assim que era e não vamos ficar esticando a conversa. É jogar verbo fora e malgastar saliva.
Embora fosse por isso, talvez, que tinha o rosto globoso a sempre se derreter numa suadeira gosmenta de dar entojo. Aquele suor abundante que lhe descia da careca, escorria pela testa, derrotava as sobrancelhas, agredia os olhos (que já eram miúdos por natureza) e fazia do pau da venta um aqueduto. Era do que também vinha, na certa, aquele arremate terroso que se grudava nas bordas do infalível colarinho branco.
Se bem que também os alunos, embora metidos em seus propícios uniformes, com aquelas arejadas camisas brancas de linho e as canelas nuas desde os abanhados das pernas das calças curtas azul-marinho, também transpiravam em bicas. Afinal de contas, era verão onde só há verão pelo ano inteiro. Salvo, um dia perdido, alguma intrusa pancada de chuva ou ameaça de friagem, do tipo que termina prefácio de um livro que não será escrito. Há quem até garanta que é por causa do rio. O espelho d’água, afirmam, repercute os raios acalorados do sol a pino e manda que atormentem os ribeirinhos.
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NÃO POSSO AFIRMAR que não seja mais um caso de fake news. Mas se andou dizendo que Ariano, como se fosse um defeito, era viciado em livros. Daí por que sempre andava com um ou dois volumes debaixo do sovaco. E, dentro
deles, aquele monte de folhas de papel onde estavam escritos, com exagero e tudo, mais de mil poemas. A se tirar, pelo menos, do que soltou, querendo ou não, Maria Júlia, uma colega de classe de língua solta e que era tida e havida como os pés do cão. Ela os havia visto, com os próprios olhos, num dia em que Ariano se descuidou e a papelada se espalhou pelo chão do pátio do recreio. Ela mesma o havia ajudado a correr atrás de folha por folha. E não perdera tempo para o exercício da abelhudice.
Seja como for, Ariano passava as aulas como estivesse a se equilibrar num daqueles carneirinhos com que as nuvens tapeiam quem as espiona cá de baixo. Quando o professor Anunciado arriscava fazê-lo aterrissar, disparando alguma pergunta sobre as quatro operações, números decimais e máximo divisor comum, Ariano gaguejava e quase não dizia nada que se aproveitasse. Se o desafiasse, contudo, com uma pergunta sobre o que fosse de poetas ou poemas, era na certa que responderia na ponta da língua. O que respondia a um encanto que cresceria com ele, vindo a rebentar de vez quando conheceu os poemas de um romantismo disfarçado de Abílio Manuel Guerra Junqueiro.
Acreditava em vida após a morte, em reencarnação como terapia espiritual, em almas do outro mundo que vêm assustar os vivos e trocar ideias com eles. Desde muito cedo, porém, aprendeu a desdenhar do que dizia piedade suspeitosa dos pregadores e suas confrarias. Isso, porque se gabava de ver muito além do que os olhos conseguiam ver. E não era do mesmo jeito deles que decifrava a provação de Jó, o adultério de Davi, o degredo de Maria Madalena, a deserção de Judas e a covardia de Simão Pedro.
É até estranho que se tenha resignado quando os avós, de uma hora para a outra, botaram na cabeça que ele tinha tudo para virar padre. Talvez pelo ar circunspecto de que não se desarmava ou somente daquele gosto alucinado da leitura. E lá foi ele para o Seminário.
Tempo perdido, como era de se esperar. Não deu certo. Pulou fora tão ligeiro quanto entrou. E se pôs no oco do mundo. Virou andadeiro.
Foi assim que bateu pernas para cima e para baixo e conheceu um mundo de gente boa e outro tanto de gente ruim. Fez de tudo um pouco para não ter como não ter o pão de cada dia. Onde punha os pés logo estava metido na alta roda dos homens letrados e a escrever para tudo o que era de jornal. Mas nem assim mudou a cabeça. Continuou a tocar a vida como se depois do hoje não fosse haver um amanhã. Talvez ludibriado pelas manhas calculistas dos que aplaudem como se pagassem para ser aplaudidos. Pelo menos nessas horas, Ariano via muito menos do que seus olhos na verdade viam.
Só quase a muque abriu os olhos. Deu-se conta de que as suas horas de vacas magras já eram todas as horas. Mas também de que as amizades estacionavam nos sorrisos amarelos, tapinhas de fingida simpatia nas costas, discursos frouxos de comiseração e nisso ficavam. Lembrou-se do que lhe havia dito o seu avô quando tentara, a todo custo, convencê-lo da imprudência de ir tentar a vida como forasteiro: «A dor do desamparo é muito mais doída quando dói nas terras alheias».
Já era um guerreiro exausto, certamente. Mas não era preciso que se deixasse converter em um guerreiro derrotado e sem honra. Se era para sofrer, que sofresse no chão que o vira nascer. Pelo menos teria o consolo de não estar sozinho. Ainda que estivesse.
Retornou a Penedo. E na única mala, arruinada pelo tempo e pelo desmazelo, vieram com ele o vírus do desassossego, o vinagre da desesperança e a crença na bênção anestésica da embriaguez.
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ASSIM COMO TANTOS POETAS de respeito, Ariano também divinizou a sua musa. Seu nome de pia era Ifigênia. Mas ele a rebatizou com um nome de fantasia: Alva. Poderia ter sido, por exemplo, Beatriz, Laura, Heloísa, Marília, Eugênia… Mas preferiu Alva. E não foi uma escolha avexada e muito menos de arranjo. Foi, sim, uma predileção bem pensada, qual vinho branco maturado em borras.
Quando se conheceram, Ifigênia mal havia se despedido da puberdade. Sendo franco, é de dizer que era uma campesina de poucas letras, mais desconfiada do que tímida, sovina no gasto das palavras e de coração mole. O que, por alguma razão, já o encantou. Para completar, havia aqueles alumiados olhos verdes, aquela pele nevada de maciez insinuante, aqueles cabelos de uma lourice impetuosa, aquele semblante pacífico de passarinho durante a muda.
Como não falta quem goste de adivinhação, andaram dizendo que era uma herdeira distante dos traços e da cor da pele e dos cabelos dourados de algum dos soldados flamengos que, há mais de três séculos, andaram por aquelas bandas. Mas a verdade é que, sendo ou não sendo, não muda nada. O que interessa é que ficaram encegueirados um pelo outro.
Pelo que ele haveria de confessar pelo resto da vida, o nome Alva teria sido tirado de Estrela-d’alva. E isso porque, com ela, chegou-lhe o fulgor de uma alvorada nascente, tal e qual disse Sabino da sua musa de pequeninas e esguias mãos. A mesma a quem Sabino confiou a sua derradeira lágrima de amor. Aquela que despencaria dos seus olhos, quando, afinal, fosse esganado pelo enigma da morte.
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ARIANO, DE FATO, não era ele, era o outro. Ao menos porque fincava pé em sê-lo. Continuava a repisar, mesmo quando debochavam, que era a reencarnação de Sabino Romariz. E não houve força humana que lhe tirasse isso da cabeça.
E explicava: como aconteceu com Sabino e Delma, nasceram-lhe dois filhos com Alva; como Sabino, a ambos cantava como dois melros; como Sabino, havia sido um andarilho; como Sabino, enfim, vivia a tropeçar em si mesmo. E, ainda por cima, ambos nasceram em Penedo e eram parelhos na inspiração, nos devaneios, nas angústias, nas mágoas e nos raros momentos de desfastio e de paz.
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SE ARIANO ACREDITAVA que em Penedo as suas privações iriam minguar, errou feito. Não mudou nada, na verdade. Muito pelo contrário, até se alargaram. Ficou, de vez, sem meios para sustentar Ifigênia e os dois melros. Se antes era afogado pela maldade da indigência, da indiferença e do fingimento, agora, sem se livrar daquilo tudo, era ainda atormentado pelo remorso de não ter, nem mesmo, como pôr comida na mesa.
Deixou-se escravizar, agora de uma vez por todas, pela sedução embriagadora de Baco. O que, pelo visto, em vez de sufocar o capricho da inspiração poética, o que parece é que mais a atiçou. Nem quando mal tinha forças para se erguer e cambalear no caminho de casa, amornava o impulso que o atirava aos seus repentes. A maioria, diga-se de passagem, logo mais esquecidos pelos que o ouviam e até por ele mesmo. Por isso que muitos dos seus cânticos e prantos evaporaram. E não há como resgatá-los. Foram abafados pelo tinir dos copos ou desperdiçados pelos apagões decretados pela cachaça.
Já não encontrava ocupação que não fosse a de garantir não ter ocupação. Desconstruía os dias a perambular de boteco em boteco, somando os seus soluços às mágoas de outros tantos desventurados. É claro que era mastigado pela impotência para garantir o mínimo a ele e à família. Só que, de tanto se empenhar em calar a culpa que o maltratava, a cada dia mais a assanhava. E não adiantava advertir-se, nos instantes de lucidez, de que não é negando ou camuflando a desgraça que se degreda o desassossego e restaura a paz.
Resignou-se a apiedar-se dos seus melros apiedando-se de si mesmo. Não era querer além da conta, ao menos, uma morada decente onde pudessem dormir e despertar. E naquele natal, então, esmagado pelo furor da desesperança, entrou na soledade da Igreja de São Gonçalo Garcia. Foi até o altar-mor, certificou-se de que não havia ninguém para ouvi-lo e rezou um soneto de Sabino Romariz, debulhando-se em lágrimas ao balbuciar os dois tercetos: «Mas ao ver os dois filhinhos como dois melros sem ninho, o pobre vate, que é pai, exclama, contendo o pranto: “Amigos, um ninho é um tanto, por piedade, amigos, dai».
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NÃO HÁ QUEM POSSA DIZER onde finda a verdade e principia a invenção. Mas ficou dito e redito que Ariano estava lá, de pé, em um dos degraus que desenham a fachada do Teatro Sete de Setembro. Tinha os olhos em brasa, o corpo a balançar feito o pêndulo de um metrônomo, a cabeça relutante quanto a se guardar aprumada entre os ombros ou arriada sobre o tórax.
Os sinos da Igreja de São Gonçalo Garcia ainda não haviam badalado o anúncio do meio-dia. Não se sabe bem se era domingo. Mas é verdade que quase não se via um pé de pessoa na Rua do Comércio. O que não faltava, contudo, era o calor escaldante de mais um abafado dia do interminável verão.
Quem o visse daquele jeito, poderia acreditar que varara a madrugada insone, a se consolar com os goles entornados pela noite inteira. Mas pode crer que não era bem assim. Tinha madrugado e logo ganhado a rua. Saiu tão cedo que chegou a assistir serem abertas as portas do bar e gozar o triunfo de ser o primeiro freguês a pedir o primeiro trago. O que não era novidade.
E não parou por aí. Mais um, mais outro e outro mais. Até que a vista começou a embaralhar as imagens, a voz engrolada meteu-se a enganchar as palavras e as mãos começaram a tremer como se fossem chamas ao vento. De uma hora para outra o ar começou a faltar e Ariano se obrigou a se convencer de que era urgente esticar as pernas e respirar a céu aberto.
Foi o que o fez erguer-se a custo e tomar o rumo da rua. Talvez não imaginasse que, ao enfrentar de cara a quentura despejada por um sol impiedoso, iria se arrepender da hora em que se enfadou com a sombra abrigada no lado de dentro. Mas vá ver que nem teve consciência do desacerto da escolha.
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LÁ ESTAVA ARIANO SOZINHO, quando eis que viu de longe o que parecia uma magra procissão. Vinha, por certo, das bandas do puteiro do Camartelo. A princípio, até que deu o visto pelo não visto.
Mas o cortejo foi chegando, chegando, até que ele pôde enxergar, enfim, que vinha sendo puxado por um adolescente de andar desengonçado. E era ele quem trazia nas mãos, como se fosse um ostensório, a tampa de um caixão de defunto: uma urna pequenina e vestida de azul celeste. Pelo que deu logo para que adivinhasse que era o enterro de um anjo; um recém-nascido ou pouco mais do que isso.
Duas ou três passadas atrás do mestre-sala, vinham dez ou doze crianças, cada uma com o rosto mais compungido do que a outra. Pelo menos cinco vinham abraçadas com envergonhados ramalhetes de astromélias, margaridas e rosas brancas, misturadas com umas poucas folhas verdes que poderiam ser, ou não ser, de uma daquelas palmeiras anãs.
Só então vinha o ataúde, no meio de uma tempestade de prantos e carregado por uma moçoila de peitos nascentes e três meninos já taludos. Uma mulher de rosto chupado e lavado de lágrimas, amparada por duas outras
de semblantes igualmente arruinados, era, na certa, aquela de quem o filho havia sido amputado.
Não havia nenhum homem que desse para suspeitar de que era o pai da criança desencarnada. Ausência, contudo, que não surpreendeu Ariano, quando atinou, caso não estivesse enganado, que aquela mãe
descabelada era uma das putas do bordel da Creuza. Deixou para lá. Que diferença poderia fazer? Mãe é fonte de amor que jamais escasseia. As tragédias, diferentemente do que se dá com os homens do mando, não hospedam preferências nem se assustam com fortuna ou poder: vão atropelando quem encontram pela frente.
Pode-se até ter dúvida de que todos sejam mesmo iguais perante a lei; perante o risco do infortúnio, contudo, pode-se ter plena certeza de que todos o são.
Nem é preciso dizer que o caixão vinha destampado. Era de costume quando se tratava de enterro de criança. E não era para que o desencarnado pudesse contemplar, pela derradeira vez, a concha do firmamento inundada por uma imensidão de luz.
Tratando-se de um infante, recordou Ariano o que havia sempre ouvido dos mais velhos: a morte não é uma despedida dos homens e do mundo ou, talvez, a renúncia forçada ao abrigo do mundo e à presença dos homens. Se morreu criança, era porque não estivera entre os homens para ser provado. Aqui chegara como um mensageiro para cumprir uma missão encomendada pelo Altíssimo. E era como um anjo que agora voltava ao lugar que lhe cabia no paraíso.
Que todos, portanto, pudessem ver aquele anjo nos começos da sua viagem de retorno à companhia do sempiterno. Poderia chegar lá como medianeiro, como procurador de quantos deixava neste vale de lágrimas. Não sendo um pecador, era para ser venerado e não pranteado. O que se transportava, portanto, não era um ataúde; era um nicho à procura de um altar.
O corpo estava mergulhado em um oceano de lírios roxos. De ver, mesmo, somente o rosto miúdo, de um preto convicto, além das mãos contritas que, como sempre fazem, descansavam sobre o peito os dedos minúsculos e entremeados.
Não dava para decifrar se era menino ou menina. Mas seria bobagem preocupar-se com isso. Até porque nem os tonsurados chegaram a dar fim à edificante controvérsia quanto aos anjos terem ou não terem sexo. E não se diga que por falta de incendiárias discussões teológicas entre esclarecidos mitrados. Muito pelo contrário.
Foi grande o bate boca, lá em Constantinopla, sobre esse tema tão útil e meritório. Basta ver que os
sábios nem se deram conta de que, lá fora, soldados otomanos e bizantinos dilaceravam-se. Quando puseram as cabeças iluminadas fora do salão suntuoso em que se digladiavam, Inês era morta. Os otomanos já eram senhores da cidade e um império estava destroçado.***
QUANDO O PRÉSTITO, afinal, chegou à altura de onde Ariano estava, tal qual uma paradoxal estátua balouçante, ele deu com a mão e a marcha estacou. De uma hora para a outra era outro homem: ereto, tronco firme, cabeça erguida, olhos de quem consultava o infinito. Parecia transfigurado, a aguardar fosse arrebatado por uma carruagem de fogo, que nem Elias.
Esticou as vistas para o ataúde, que na verdade era um santuário, engoliu o que semelhou um soluço e pôs-se a declamar, de cor e salteado, um soneto de Sabino Romariz. Aquele que começa dizendo que o lírio da Judeia era uma flor imaculada, casta como um sorriso de Maria. Mas que ficou crepuscular, tornou-se roxo, quando, estando ao pé da cruz fincada no Calvário, derramou-se sobre ele uma gota de sangue do nazareno agonizante.
Foi como se Ariano estivesse em um jardim da agonia. E cada verso que recitou foi uma gota de sangue que suou.
Nem se preocupou em revelar de quem era o poema. Se ele era Sabino Romariz reencarnado, ambos se fundiam em uma duidade quase sacrossanta. Ao declamar O lírio, portanto, era o próprio Sabino quem o fazia, valendo-se da garganta e da voz dele. Não se podia falar em plágio e muito menos em usurpação da autoria.
Mas é de imaginar que Ariano, sufocado pela aflição daquela mãe mutilada, sangrou ao ter certeza de que, no seu caso, não foi ele quem teve os dois melros arrancados. Muito pelo contrário, foram eles que tiveram o pai amputado.
E nisso Ariano e Sabino, fundidos em única criatura, despregaram-se do chão e foram levitando sem pressa, até que, como se fossem dois melros, voejaram docemente por alguns instantes, para finalmente sumirem no meio de uma nuvem arroxeada, com se fosse um colchão de lírios da Judeia.
Ponta Verde, em Maceió, 10 de dezembro de 2020
* CARLOS Barros MÉRO (Penedo, Alagoas, Brasil – 1949) é membro da Academia Alagoana de Letras. Publicou: O beco das sete facadas (Contos): São Paulo, Marco Zero, 2005); A lua de fel do casal Valhamor (Conto): L’Ordinaire Latino-Americaine, no 212, Université de Toulouse – Le Mirail, 2010; Graciliano Ramos: un monde de peines (Depoimento): Lille, The Book Edition, 2015; A deserção de Maíra (Novela) in Inventando Maíra: São Paulo, Scortecci, 2016; Um gosto de mulher (Poesia), Maceió, Imprensa Graciliano Ramos, 2018, 2a edição; O chocalho da Cascavel (Contos), São Paulo, Scortecci, 2016; Dias assombrados em Roma (Memórias), São Paulo, Scortecci, 2020, 2a edição; Contos covidianos (Contos), São Paulo: Scortecci Editora, 2021.
** Sabino Romariz, poeta simbolista brasileiro (Penedo, Alagoas, 25/03/1873 – Penedo, Alagoas, 09/05/1913) – Publicou em Portugal: Toque d’alva (Lisboa: Tipografia do Anuário Comercial, 1911). Publicou no Brasil: Lamma sabachtani (1903), Ignis (1908), Mea culpa (1910), etc.