EÇA DE QUEIRÓS E GRACILIANO RAMOS: DIÁLOGO CRIATIVO*

Pessoas com uniforme militar

Descrição gerada automaticamente

Reconheço que seria eu imprudente, para não dizer ousado, caso me atirasse a qualquer recensão crítica acerca da abundante e emblemática produção literária de EÇA de Queirós. Logo ele, a quem Harold Bloom, sterling professor na Yale University, incluiu na constelação dos escritores ocidentais canônicos de todos os tempos. De quem diz, ademais, Maria Filomena Mónica, da Universidade de Lisboa, ser o codificador do português moderno. Tanto mais fazê-lo nessa confraria a ele consagrada. Mais, ainda, diante dos seus eminentes membros que, tamanhos o desvelo e o rigor no estudo da obra do misantropo de Póvoa de Varzim, dela e dele se fizeram íntimos. 

Daí por que, se cá venho, é, só por só, para pontuar um diálogo criativo que me atrevo a surpreender entre Graciliano RAMOS e EÇA de Queirós, na esteira dos magistérios especializados de estudiosos realmente eruditos e qualificados.  

A exemplo do também diálogo mantido por EÇA com HOMERO, RENAN, FEUERBACH, GAUTIER, NERVAL e alguns outros romancistas, poetas e iluminados pensadores, neles encontrando inspirações. Da mesma forma que os diálogos de CAMILO com BALZAC, o de HERCULANO com Walter SCOTT e   DUMAS, o de MACHADO de Assis com SHAKESPEARE.

O que traz a convicção de que o autor-enunciador, no ato da criação   literária, não se sujeita a se converter em uma ilha, desfazendo-se das suas experiências cognitivas e existenciais. Isto é, a não permitir que a sua voz embuta outras vozes, cujos conteúdos internalizou no curso das suas vivências. Afinal, inexiste crime em validar, contraditar, transmudar ou ressignificar vozes alheias, de forma implícita ou explícita, convergente ou divergente.    

EÇA e sua obra estiveram presentes como fontes de inspiração de RAMOS, sim. Daí o diálogo criativo estabelecido ente ele, o autor de Vidas Secas, e EÇA, o criador de Os Maias. E é disso testemunha mais incisiva Caetés, romance inaugural do prosador das Alagoas, publicado nos idos de 1933.   

Um colóquio estilístico e temático que ostensivamente os aproxima. Em RAMOS, como em EÇA, o mesmo obstinado zelo pela forma e pelo culto à pureza do idioma lusitano. E ainda o ostensivo empenho na sondagem da alma humana: EÇA, atento ao cenário social português do seu tempo (predominantemente o rural) e aos tipos humanos que o povoavam; RAMOS, comprometido com uma radiografia da cena social brasileira de que contemporâneo, colhendo por modelos a cidade de Palmeira dos Índios e sua gente. 

A escolha de Palmeira dos Índios, eis que, já na idade adulta, RAMOS lá viveu por mais de uma década, tendo chegado, inclusive, a ser Prefeito Municipal. O que lhe rendeu, a partir da sua realista e aguçada observação, apreender os perfis interiores dos atores locais e as características pontuais da tessitura social em que inseridos.   

Com isso, a consciência de que ambos, RAMOS e EÇA, estiveram   francamente atraídos pela recolha dos traços psicológicos dos viventes e com a extensão da interferência do meio na plasmação das suas individualidades. Bem como destas na modelagem da comunidade. O homem, portanto, como efeito e causa da realidade social em que convivente.  

Intercâmbio, porém, que não viria a fraturar a originalidade da criação literária de RAMOS, prosador icônico no universo dos escritores brasileiros do Século XX. Da mesma forma que também não comprometida a originalidade de EÇA, quando, ao escrever o conto A perfeição, revisitou a Odisseia de HOMERO. Ou, ainda, quando, ao escrever A ilustre casa de Ramires, teve em conta, segundo leciona Isabel Margarida Duarte, da Universidade do Porto, o romance Ódio velho não cansa (1848), de Luiz Rebelo da Silva, ao desenhar a narrativa histórica que Gonçalo Mendes Ramires estaria a obsessivamente construir.

 Relevante, sim, é considerar que EÇA esteve sempre desperto para uma realidade marcada pelos convencionalismos, pela apatia, pela estagnação, pelas excentricidades e mesmo pela resistência à modernidade, o que, ao seu sentir, estigmatizava as paisagens humana e social  do Portugal dos estertores do século XIX; RAMOS, por sua vez, esteve sempre devotado ao desvendamento das tipicidades, contradições e mesmo esquisitices do convívio humano,  particularmente na primeira metade do século passado, tomando por cenário um pequeno burgo do agreste das Alagoas, no Brasil. Ambos, finalmente, instigados pela inclinação para uma ótica crítica da sociedade. Nem sempre tão sutil, é certo, porém invariavelmente apimentada com uma ironia a um só tempo afiada e refinada. Obras, enfim, que se converteram em verdadeiros romances de maneiras.

O próprio RAMOS, antes mesmo da publicação de Caetés, já confessava a sua admiração por EÇA, proclamando a justeza do quanto ser ele efusivamente louvado, tanto em Portugal quanto no Brasil. O que, ao ver de RAMOS, não somente vinha da mestria de EÇA como inspirado prosador e fecundo ficcionista, mas também da sua visão aguda do mundo e da paisagem humana ao seu redor, ao que estaria associado o que reconhece personalidade singular de EÇA. Via nele, por conseguinte, um autor decidido a decifrar o homem e a sociedade por trás das máscaras que os disfarçam: ele, o homem, com suas fragilidades morais, falsas virtudes, hipocrisias deletérias, aparências forjadas, religiosidades fingidas; ela, a sociedade, a refletir e até estimular tais padrões corrompidos, farisaicos e por vezes bizarros. 

Por isso mesmo (e muito mais) a admiração que RAMOS tributava a EÇA. A tal ponto, ressalte-se, de incisivamente se contrapor a Machado de Assis, a quem muitos atribuem o epíteto Bruxo do Cosme Velho, quando este se ergueu contra o que censurou como realismo depravado de EÇA. Juízo este, seja esclarecido, em razão da exposição, no ventre das criações ecianas, de personagens que, embora sem falseios e com sólida verossimilhança, espelhavam as maleitas morais de pessoas de carne e osso, no contexto do mundo real. E sempre com crueza elegante, sem se desfazer, contudo, da sátira mordaz, malgrado lapidada, nem sempre compreendida pelos próprios portugueses e, mais ainda, dos seus tradutores.

O que de algum modo reafirma o achegamento criativo que sobreviria entre RAMOS e EÇA. Sintonia que não esbarrou no primor estilístico e na veneração à língua de Camões, Vieira, Herculano, Garrett, mais tarde Fernando Pessoa e tantos mais.  Nem somente nas cortantes arremetidas anticlericais de EÇA, com o que dava voz ao pensamento preponderante na chamada Geração de 70, de que participou na companhia de Antero de Quental, Ramalho Ortigão e outros tantos intelectuais portugueses. Por outro lado, EÇA guardava-se fiel a um certeiro e severo enojo frente às futilidades, imposturas, perfídias e cinismos que infectavam os homens e contaminavam as coletividades em que contracenavam. E não foi diferente com RAMOS. 

Talvez, por isso mesmo, a similitude nos perfis de certas personagens de RAMOS, diante de correspondentes ecianas, ainda que com contornos singulares que as situavam no tempo e no espaço, o que não arreda as originalidades das escrituras de um e de outro ficcionistas. Enfim, os tais tipos por eles modelados ficaram como exemplares de atores que, assim em Portugal, como no Brasil,   encarnavam virtudes e nódoas ostensivas, no que atina com o caráter e com o papel que assumem. A imaginação, portanto, a despir o real.  Embora, reafirme-se, com precisas colorações destoantes, em face das influências do ambiente social em que contracenam, eis que, insista-se, mirou EÇA a sociedade portuguesa dos finais do século XIX, enquanto focou RAMOS uma miúda comunidade urbana do agreste das Alagoas, no meado do século XX.

Suficiente que se percorra a trama embutida no romance Caetés, de RAMOS, que se viu impresso e levado a lume quando já inteirado um trintênio desde o clímax existencial de EÇA.  De fato, é o que basta para que já se enxergue tal interlocução literária, no que concerne à caracterização psicológica de personagens cujos vultos se comunicam, consoante catalogadas, com remarcada perspicácia e singular proficiência, por Débora Carla Santos Guedes, no lúcido ensaio Eça e Graciliano: Olhar realista, duas realidades. Ademais, enredos e personagens que desmascaram, com vívida verossimilhança, sociedade e homens. 

No que diz com RAMOS, aglutinando contributos memorialísticos e ficcionais que desaguam em personagens que chegam a parecer vivas. Tão vivas quanto pessoas com as quais mantemos, no dia a dia, permutas intersubjetivas, seja nas relações de amizade, seja no ambiente de trabalho, seja nas atividades de lazer e culturais, seja no íntimo do núcleo familiar.

A começar de João Valério, protagonista-narrador em Caetés, tipo esquivo, ambicioso, fantasista e interesseiro, guarda-livros na firma comercial em que eram seus empregadores os irmãos Teixeira: Vitalino, de quem pouco se sabe, e Adrião, homem fisicamente depauperado, mais arruinado pelos achaques que pela velhice. Este, Adrião Teixeira, o marido de Luísa, uma criaturinha delicada e sensível que, algumas vezes, falava de contos, versos, novela. 

Obstinado perseguidor de renome e prestígio, João Valério acreditava poder alcançá-los como escritor, doando-se à produção de um romance sobre os índios caetés, os antropófagos que devoraram o Bispo Pero Fernandes Sardinha. Nativos cujo sangue, preservado por seus descendentes, Valério acreditava que transitava por suas artérias, veias e capilares. Narrativa histórica a que se entregava, malgrado confessar-se vazio de conhecimentos de história e oco do mais raquítico talento.

Galanteador, termina por seduzir Luísa, mulher jovem, prendada, formosa e recatada, esposa, segundo já anotado, do enfermiço e alquebrado patrão de Valério, na esperança de vê-la viúva e com ela se casar, quando poderia passar a se aproveitar da fortuna que a ela caberia como cônjuge sobrevivente. Matrimônio que lhe valeria merecer a tão ambicionada sensação de pertencimento à comunidade palmeirense e o tão sonhado conceito perante a gente do lugar. Não carecia de mais. O seu mundo, quanto a isso, tinha começo, meio e fim naquele chão.  Demais disso, era lá que estava Luísa, com quem viria a consolidar uma relação carnal, ao menos aparentemente amorosa, durante uma viagem de Adrião Teixeira. A Luísa que ele, numa explosão romântica de RAMOS, poderia confundir com a estrela amável que avultava em cima do morro, na antevéspera.

Uma carta anônima, contudo, que se suspeita tenha sido escrita e   perversamente remetida pelo farmacêutico Neves, um difamador inveterado, maldoso e exímio mexeriqueiro, denuncia o adultério a Adrião Teixeira. A exemplo de Dâmaso Cândido de Salcede, de Os Maias, que, igualmente sem caráter e por uma carta anônima, delatou a relação entre Carlos de Maia e Maria Eduarda. E ainda fez publicar, em jornal, notícia sugestiva de tal relacionamento quando pouco desavergonhado, a se considerar a sociedade patriarcal da época. Máxime quanto a Maria Eduarda, eis que, sendo mulher, era alvo fácil para o indisfarçável machismo discriminatório que então prevalecia. 

A trama de Caetés é ainda habitada por personagens secundários, valendo citar o Padre Atanásio, clérigo iletrado, de raciocínio curto e trôpego pregador incapaz de compor e externar os próprios pensamentos. A quem faltava aptidão, até mesmo, para executar a tarefa, para ele árdua e estafante, de consultar um dicionário e espantar a dúvida quanto a se escrever eucalipto com I ou com Y. Embora dado, presunçosamente, a divagações filosóficas e preleções teológicas. 

Também Evaristo Barroca, advogado de palavreado pomposo e intrincado, cujo êxito profissional devia-se a um manejo calejado das leis e das estratégias nos procedimentos judiciais. Sem falar das próximas relações que mantinha com famílias abastadas e de uma presença atuante nos círculos políticos. O que o credenciava a ter seu nome cogitado para ser provido em cargo de secretário de estado, enquanto ambicionava ser alçado a deputado. Um degrau para voos mais altos. Enfim, um homem que Valério enxergava de sucesso e, por isso mesmo, se tinha envenenado, contra ele, com uma inveja ressentida e corrosiva, ao estilo de Julião Duarte, de O primo Basílio.

É aí onde eclode o olhar prospectivo de RAMOS, identificando, no mundo que o cerca, espécimes humanos que muitas vezes chegam ao grotesco, como tantos gestados por EÇA, com igual agudeza. Tipos, por conseguinte, de presença universal e não apenas em ambientes sociais e culturais determinados. Tão comuns, portanto, na cena diária de Portugal e de Palmeira dos Índios, como em qualquer outro sítio pelo mundo afora, ontem e, até mesmo, hoje.

João Valério lembra, igualmente, Gonçalo Mendes Garcia, de A ilustre casa de Ramires, enquanto obstinados na caça de notoriedade e ascendimento social, ambos empenhados na produção de romances históricos que findam por semelhar fetos inviáveis: João Valério, após minguados alinhavos, a empacar na redação da sua narrativa indigenista, em que pretendia demonstrar-se um antropófago índio caeté; Gonçalo Mendes Ramires, emperrado na composição de um relato focado na história de Portugal e ambientado no século XIII. O que, ao seu sentir de descendente de uma família aristocrática decadente, poderia ressuscitar a nobreza da sua estirpe, com o relato da trajetória do seu ancestral, Tructesindo Ramires, que teria sido fiel cavaleiro do Rei D. Sancho I. 

Ao que se somam, em Caetés: a inclusão de um romance dentro do romance, figurino de que se serviu EÇA em A ilustre casa de Ramires; a presença do protagonista-narrador, receita que havia sido seguida por EÇA em A relíquia. E RAMOS retornaria a tal modelo Em São Bernardo (1934) e Angústia (1936).

João Valério também se aproxima do sedutor Basílio, de O primo Basílio, vez que que tocados por paixões líquidas e de evaporação pressentida. Talvez por não serem arroubos passionais florescidos e alimentados pelo afeto, mas sim por meros impulsos egocêntricos, estimulados pelo oportunismo, pelo antegosto do triunfo da conquista e pela embriaguez da luxúria. A Luísa de EÇA, mulher inflamada por leituras românticas, uma caça a ser consumida, pelo primo Basílio, talvez com programado prazo certo e para durar por uma estação; a Luísa de RAMOS, também um tanto apegada aos livros, uma presa a ser mantida cativa enquanto de serventia para o atingimento do alvo da cobiça de João Valério, não fossem os remorsos que mais tarde viriam a roê-lo por dentro.   

Teodorico Raposo, do A Relíquia, também encontra parelha em Caetés. Trata-se de Marta Varejão. Teodorico, o Raposão, ambicionava a fortuna da sua tia, Dona Maria do Patrocínio, anciã de vastas posses e carola das mais fervorosas. Receoso de contrariá-la, pois que poderia pôr em risco o legado a que aspirava, submeteu-se aos caprichos dela e abandonou o projeto de se transferir para Paris. Seguiu, então, para a Terra Santa, com a missão, inclusive, de trazer para a matrona alguma relíquia prodigiosa. E chegou a trazer um fragmento da pretensa árvore da qual extraído o galho com que moldada a coroa de espinhos que havia lacerado o crânio do Nazareno. Ao retornar, contudo, uma trágica adversidade: enganou-se e terminou por entregar à tia uma peça de roupa que recebera, de lembrança, de Miss Mary, uma amante com quem se havia envolvido em sua passagem por Alexandria. Prenda em que se via o monogramas MM. Deu no que deu: a tia sentiu-se ultrajada, expulsou-o do seu convívio e, mais tarde, reduziu a seus óculos a herança que deixou para o sobrinho. Bem que ele poderia ter garantido à tia que aquelas letras remetiam a Maria Madalena (MM). O que atribuiria sacralidade à peça, satisfazendo os arrebatamentos de Patrocínio, como cristã ardorosa.

Marta Varejão, em Caetés, era filha de Nicolau Varejão, mentiroso de prodigiosa fecundidade, que se dizia espírita e reencarnação de um voluntário na Guerra do Paraguai e, em outros tempos, também respirara como tipógrafo que exercera o seu ofício no Rio de Janeiro e em Turim. Também ela, tal qual Raposão, se valia da manha para preservar a benquerença de Dona Engrácia, senhora de muitas posses, barata de igreja, ranzinza, avara, baluarte inflexível da moralidade e sem papas na língua. Sua afilhada e tutelada, Marta era a presuntiva herdeira universal de uma alentada fortuna que enchia os olhos e a ambição de anjos e demônios. Mas sabia Marta que carecia de preservar a estima da anciã, enquanto viva esta estivesse. Cuidou, então, de se mostrar tão exaltadamente devota quanto ela: somente usava roupas de decência certificada pela tutora; jamais faltava às missas celebradas pelo vigário, Padre Atanásio. E, para mais parecer a ela uma crente obsessivamente leal aos cânones da Santa Madre Igreja, até se deu, com o maior desvelo, à piedosa tarefa de montar um presépio. Enfim, lá e cá, a fé e a hipocrisia a serviço da avidez. 

E não se vá deslembrar, ainda em Caetés, do já mencionado Advogado Evaristo Barroca, especialista em cavar favores. De certa forma tal e qual o Conselheiro Acácio, deleitava-se com o impacto que desatava, mercê do seu linguajar grandiloquente, a destilar pretensa erudição. Afeito a convenientes elogios aos governantes, ao mesmo tempo sugeria ser um defensor da moral e dos bons costumes. Homem habilidoso, bajulava os poderosos e crescia na política. Mais cedo ou mais tarde haveria de ser premiado. Não com medalhas e louvores por encomenda e bajulices por interesse… com posto, isso sim, na hierarquia estatal, que, a tal ponto importante, haveria de preparar a sua evolução, mais cedo ou mais tarde, à dignidade de senador da República.

Já o Padre Atanásio, de quem já se sabe a falta de luzes, convoca as investidas anticlericais de EÇA, que eram comungadas por RAMOS. Máxime quando esboça a personalidade burlesca de um sacerdote obtuso que, ainda assim, suscita admiração pela gente do lugar. Um exemplo típico daqueles que intentam impressionar pela aparência, como se a sotaina, o púlpito e a capa de asperges instilassem sabedoria no eclesiástico, a toga no magistrado, o jaleco no médico, a tribuna no congressista, o anel no bacharel. A um supositivo escritor, por sua vez, um comezinho artigo publicado em jornal, um poema açucarado e sem qualquer encanto ou um discurso repleto de gerúndios, palavras difíceis e frases feitas… para não falar na abundância de citações que dão o ar de cultura vasta e multifária.

Já a Luiza de RAMOS e a de EÇA, da mesma forma expõem traços   compartilhados. A contar do fato de que são mulheres jovens, formosas, amantes da leitura. Além de educações rígida, estimuladora do gosto pelas artes plásticas, pela música, pela literatura e deliberadamente instrutórias para o esmero nos cuidados com os filhos e com a administração do lar. O que guardava afinidade com o figurino comportamental conhecido por EÇA e RAMOS, quando ainda prevaleciam épocas de manifesta opressão às mulheres, a lhes sufocar a humanidade e, por pouco, a não as coisificar. Um comportamento social que como as reduzia a meros artigos de adorno e mãos de obra treinadas para conduzir os quefazeres do lar. 

Diversos, porém, os destinos que lhes foram tramados pelo adultério: a Luísa de RAMOS não encara consequências pelos atos a ela atribuídos. Salvo   possa alguém entender que punida, após a morte do seu marido Adrião, pelos sobrevindos desinteresse e abandono por João Valério. A verdade, porém, é que ela  encarou aquela reviravolta com contraditória resignação, eis que ao mesmo tempo impregnada de indiferença e a se desmanchar em prantos; a Luísa de EÇA, também abandonada, mutatis mutandi, por Basílio e afogada nas ameaças de Juliana, a serviçal chantagista que persistia a ameaçar denunciar-lhe a traição, começa a decair, adoece e finalmente morre. 

Quanto aos maridos, o da Luísa de RAMOS, Adrião Teixeira, despachou um tiro contra o peito, num suicídio de eficácia protelada. Isso porque somente viria a morrer dias mais tarde, após lenta agonia em que assistido por amigos e pelo dissimulado João Valério. Jorge, o marido da Luísa de EÇA, embora ciente da infidelidade da mulher, ainda que dolorido e desesperado, a perdoou.

Personagens, portanto, que se tateiam mas não se confundem; tramas que que se roçam por pormenores pontuais mas não se arremedam. Mesmo porque a cobiça, a impostura, a afetação, a deslealdade, a soberba e a hipocrisia não são nódoas que apenas maculam certos homens e precisas sociedades em quadras determinadas da história. São, antes, laivos de incidência universal, sem lastros cronológico e geográfico pontuais, que bem atestam as perturbações da natureza humana. Por isso mesmo enfocadas, até amiudadamente, por tantos pensadores e artistas da palavra.

Não são de estranhar, portanto, os testemunhos de EÇA e de RAMOS, como, igualmente, os de MOLIÈRE, BALZAC, JÚLIO DINIZ, JANE AUSTEN. 

 

Nas obras que sobrevieram a Caetés, sejam romances, contos, crônicas ou memórias, RAMOS permaneceu leal ao discurso enxuto, objetivo e à linguagem próxima da oralidade, com relações metalinguísticas, sem adereços e liberto de adjetivos despiciendos. E, também, ao mergulho arguto na alma humana, removendo as máscaras e as hipocrisias. Bem como ao rigor da forma e ao cultivo da pureza do idioma, sem dispensar a ironia e a delação das enfermidades morais dos indivíduos e da sociedade.

É igualmente verdadeiro que a técnica empregada por RAMOS, na construção das suas narrativas preservou parentesco próximo com aquela de EÇA, o que reacende a noção do diálogo criativo que com este RAMOS estabeleceu. Um aspecto, contudo, particularmente especifica a criação graciana, qual seja a de encarar a realidade dando sempre realce à ótica do indivíduo, tomado por sua singularidade.

O que até pode ser observado quando humaniza a cadela Baleia, personagem de Vidas Secas. Enferma e já prostrada, lá está ela a refletir, angustiada, segundo o seu próprio ângulo de visão do mundo, sobre o seu papel no convívio com a família de retirantes: a frustração por não estar a poder brincar com os meninos e a trocar agrados com Fabiano. E sonha com um mundo repleno de preás roliços, enquanto apreensiva com a espingarda, apetrecho de natureza e utilidade desconhecidas por ela.

Humanização que também exsurge na epitextualidade, quando escreve para Heloisa Ramos, sua esposa, evidenciando a dificuldade em caracterizar uma cadela que age e pensa como se fosse gente (… procurei adivinhar o que se passa na alma de uma cachorra. Será que há mesmo alma em cachorro?).

Em carta endereçada à sua irmã, por sua vez, RAMOS, sublinhe-se, é enfático ao expor a sua receita para o mister da criação literária: resumir-se, o autor-enunciador, a somente dizer o que sente e nada mais. No que diz com o estilo, RAMOS, durante entrevista que cedeu em 1948, fez uma profissão de fé:

 A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer. 

Embora sem o brilho que o tema reclama, eis o que tenho a dizer sobre Graciliano RAMOS e seu diálogo criativo com EÇA de Queirós.  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

DUARTE, Isabel Margarida. A ilustre Casa de Ramires: maturidade do relato de discurso em Eça de Queirós. Porto: Atas do Colóquio Internacional Literatura e História. Vol. 1. 2004. PP. 215-221

( https://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/6804.pdf. ).

FREITAS LEITE, Patrícia. O plágio sob o ponto de vista da teoria dialógica: ato ético e responsabilidade autoral. João Pessoa: Universidade Federal da Paraiba. 2021.

GUEDES, Débora Carla. Eça e Graciliano: Olhar realista, duas realidades.  São Paulo: Revista Crioula, nº 3. Universidade de São Paulo, 2008………………………………………………..

( https://www.revistas.usp.br/crioula/article/view/54012/57945 )  

KRISTEVA,   Júlia.   A palavra, o  Diálogo e o  Romance.   In    Semiótica  do romance. Lisboa: Arcádia. 1978. 

MÉRO, Carlos. Graciliano Ramos: um monde de peines. Lille: TheBookEdition. 2015.

MÓNICA, Maria Filomena. Eça de Queirós.Lisboa. Quetzal Editores. 2009.

MONTEIRO, Túlio. A intertextualidade em “Caetés”, de Graciliano Ramos – Uma análise crítica. ( https://literaturaerrante.com.br/blog/a-intertextualidade-em-caetes-de-graciliano-ramos-uma-analise-critica/ )

PAULA, Felipe Oliveira de. O mundo mal arranjado de João Valério. Araraquara. Itinerários nº 44. Janeiro/Junho de 2017. Pp 31-42.

QUEIRÓS, Eça de. Obras Completas de Eça de Queirós. Porto: Lello Editores Lda. 1979. 

RAMOS, Francine. Como escrever? Graciliano responde  ( https://livroecafe.com/2021/02/07/como-escrever-Graciliano-RAMOS-responde/ )

RAMOS, Graciliano. Obras Completas de Graciliano Ramos. São Paulo: Record/Livraria Martins Fontes. 1975.

REBELO DA SILVA, Luís Augusto. Ódio velho não cansa. Porto: Livraria  Civilização-Editora. 1964.

*Palestra proferida na Confraria Queirosiana (Associação Amigos do Solar Condes de Rezende), Freguesia de Canelas, Concelho de Vila Nova de Gaia, Portugal, aos 15 de março de 2022.

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